Rangel declarou que não podia jogar, estava com dor de cabeça;

mas Joaninha veio a ele e pediu-lhe que jogasse com ela, de socie-

dade. -- "Meia coleção para o senhor, e meia para mim", disse ela,

sorrindo; ele sorriu também e aceitou. Sentaram-se ao pé um do

outro. Joaninha falava-lhe, ria, levantava para ele os belos olhos,

inquieta, mexendo muito a cabeça para todos os lados. Rangel sen-

tiu-se melhor, e não tardou que se sentisse inteiramente bem. Ia mar-

cando à toa, esquecendo alguns números, que ela lhe apontava com

o dedo, -- um dedo de ninfa, dizia ele consigo; e os descuidos pas-

saram a ser de propósito, para ver o dedo da moça, e ouvi-la ralhar:

"O senhor é muito esquecido; olhe que assim perdemos o nosso

dinheiro..."

Rangel pensou em entregar-lhe a carta por baixo da mesa; mas

não estando declarados, era natural que ela a recebesse com espanto

e estragasse tudo; cumpria avisá-la. Olhou em volta da mesa: todos

os rostos estavam inclinados sobre os cartões, seguindo atentamente

os números. Então, ele inclinou-se à direita, e baixou os olhos aos

cartões de Joaninha, como para verificar alguma cousa.

-- Já tem duas quadras, cochichou ele.

-- Duas, não; tenho três.

-- Três, é verdade, três. Escute...

-- E o senhor?

-- Eu duas.

-- Que duas o quê? São quatro.

Eram quatro; ela mostrou-lhas inclinada, roçando quase a orelha

pelos lábios dele; depois, fitou-o rindo e abanando a cabeça: "O se-

nhor! o senhor!" Rangel ouviu isto com singular deleite; a voz era

tão doce, e a expressão tão amiga, que ele esqueceu tudo, agarrou-a

pela cintura, e lançou-se com ela na eterna valsa das quimeras. Casa,

mesa, convivas, tudo desapareceu, como obra vã da imaginação, para

só ficar a realidade única, ele e ela, girando no espaço, debaixo de

um milhão de estrelas, acesas de propósito para alumiá-los.

Nem carta, nem nada. Perto da manhã foram todos para a janela

ver sair os convidados do baile fronteira. Rangel recuou espantado.

Viu um aperto de dedos entre o Queirós e a bela Joaninha. Quis ex-

plicá-lo, eram aparências, mas tão depressa destruía uma como

vinham outras e outras, à maneira das ondas que não acabam mais.

Custava-lhe entender que uma só noite, algumas horas bastassem a

ligar assim duas criaturas; mas era a verdade clara e viva dos modos

de ambos, dos olhos, das palavras, dos risos, e até da saudade com

que se despediram de manhã.

Saiu tonto. Uma só noite, algumas horas apenas! Em casa, aonde

chegou tarde, deitou-se na cama, não para dormir, mas para romper

em soluços. Só consigo, foi-se-lhe o aparelho da afetação, e já não era

o diplomático, era o energúmeno, que rolava na cama, bradando,

chorando como uma criança, infeliz deveras, por esse triste amor do

outono. O pobre-diabo, feito de devaneio, indolência e afetação, era,

em substância, tão desgraçado como Otelo, e teve um desfecho mais

cruel.

Otelo mata Desdêmona; o nosso namorado, em quem ninguém

pressentira nunca a paixão encoberta, serviu de testemunha ao Quei-

rós, quando este se casou com Joaninha, seis meses depois.

Nem os acontecimenos, nem os anos lhe mudaram a índole. Quan-

do rompeu a guerra do Paraguai, teve idéia muitas vezes de alistar-se

como oficial de voluntários; não o fez nunca; mas é certo que ganhou

algumas batalhas e acabou brigadeiro.

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