Não há dúvida de que, pior do que como foram, entregues a Malagna (a toupeira!), não poderiam ir.
Quando Berto e eu crescemos, grande parte das nossas propriedades, não há como negá-lo, já se havia transformado em cinzas; mas poderíamos salvar, das garras daquele ladrão, pelo menos o resto, que nos teria permitido viver, se não em mais abastança, sem passar necessidades. Fomos dois vagabundos; não quisemos nos preocupar com nada, continuando, já adultos, a viver como nossa mãe nos habituara em crianças.
Ela não havia querido sequer mandar-nos à escola. Um tal Pinzone [Pinça Grande] foi nosso aio e preceptor. Seu verdadeiro nome era Francesco ou Giovanni Del Cinque; mas todos o tratavam por Pinzone, e ele já se acostumara tanto ao apelido que chamava a si mesmo de Pinzone.
Era de uma magreza que causava repugnância. Altíssimo; e mais alto ainda teria sido se o busto, de repente, como cansado de crescer tão fino, para cima, não se lhe houvesse arredondado, debaixo da nuca, numa discreta corcundinha, de onde o pescoço parecia sair a custo, como de um frango depenado, com um grosso gogó saliente, que ia para cima e para baixo. Pinzone se esforçava, com freqüência, por segurar os lábios entre os dentes, como para morder, castigar e esconder um risinho de mofa, que lhe era peculiar; mas o esforço era, em parte, inútil, porque o risinho, não podendo fazê-lo pelos lábios, assim aprisionados, escapava-lhe pelos olhos, mais agudo e zombeteiro do que nunca.
Muitas coisas devia ver, com aqueles olhinhos, em nossa casa, que não víamos, nem mamãe nem nós. Não falava, talvez porque não julgasse de seu dever tocar no assunto ou, talvez, como acho mais provável, porque, em segredo, se regozijasse venenosamente com elas.
Fazíamos dele gato-sapato. Ele não se importava; porém, depois, como se quisesse ficar em paz com a sua consciência, quando menos o esperávamos, nos atraiçoava.
Um dia, por exemplo, mamãe mandou que ele nos levasse à igreja; a Páscoa se aproximava e devíamos confessar-nos. Depois da confissão, uma rápida visita à esposa, doente, de Malagna, e imediatamente de regresso para casa. Imaginem que coisa divertida! Porém, tão logo na rua, nós dois propusemos a Pinzone uma escapadela: pagaríamos um bom litro de vinho para ele, contanto que, em lugar de levar-nos à igreja e à casa de Malagna, nos deixasse ir à Stia, em busca de ninhos. Pinzone aceitou, felicíssimo, esfregando as mãos, com os olhos brilhando. Bebeu; fomos ao sítio; pintou o diabo conosco durante cerca de três horas, ajudando-nos a trepar nas árvores e trepando ele mesmo. Mas, à tardinha, de volta em casa, assim que mamãe lhe perguntou se nos tínhamos confessado e feito a visita a Malagna:
— Bem, vou lhe dizer... — respondeu, com o maior descaramento deste mundo; e contou-lhe, tintim por tintim, tudo o que havíamos feito.
De nada valiam as vinganças que tirávamos dessas traições. No entanto, lembro-me de que não eram de brincadeira. Certo dia, por exemplo, ao anoitecer, eu e Berto, sabendo que ele costumava pegar no sono, sentado na arca da saleta de entrada, enquanto esperava pelo jantar, pulamos às escondidas da cama, para onde nos haviam mandado, de castigo, antes da hora habitual, conseguimos encontrar um tubo de estanho, para clister, de dois palmos de comprimento, nós o enchemos de água ensaboada no tanque de lavar roupa; e, assim armados, chegamos cautelosamente perto dele, encostamos-lhe o tubo nas narinas... e zum!; nós o vimos dar um pulo até quase a altura do teto.
Que proveito devêssemos tirar do estudo, com semelhante preceptor, será fácil imaginar. A culpa, contudo, não era totalmente de Pinzone; pois ele, ao contrário, contanto que conseguisse ensinar-nos alguma coisa, não se preocupava com método ou disciplina e recorreria a mil expedientes para prender a nossa atenção. Conseguia-o, com freqüência, comigo, que era de natureza impressionável. Mas ele possuía uma erudição toda especial, curiosa e excêntrica. Assim, por exemplo, era muito versado em trocadilhos: conhecia a poesia fidenziana e a macarrônica, a burchiellesca e a leporeâmbica, e citava aliterações e anominações, bem como versos correlativos, encadeados e retrógrados, de todos os poetas que não tinham nada de melhor para fazer; e compunha ele próprio rimas extravagantes.
Lembro que, em San Rocchino, um dia, fez-nos repetir à colina fronteira, não sei mais quantas vezes, este seu Eco:
In cuor di donna quanto dura amore?
— (Ore).
Ed ella non mi amò quant’io Vamai?
— (Mai).
Or chi sei tu che si ti lagni meco?
— (Eco).
E nos obrigava a resolver todos os Enigmas em oitava rima de Giulio Cesare Croce e aqueles, em sonetos, de Moneti e os outros, também em sonetos, de outro grandessíssimo vadio, que tivera a coragem de se ocultar sob o nome de Gatão de Útica. Ele os havia transcrito, com tinta impregnada de fumo, num velho caderno de páginas amarelecidas.
— Ouçam, ouçam este outro de Stigliani. Lindo! O que será? Ouçam:
A un tempo stesso io mi sono una e due,
E fo due ciò ch'era uno primamente.
Una mi adopra con le cinque sue Contra infiniti che in capo ha la gente.
Tutta son bocca dalla cinta in sue E piú mordo sdentata che con dente.
Ho due bellichi a contrapposti siti,
Gli occhi ho ne’piedi, e spesso a gli occhi i diti.
Ainda tenho a impressão de vê-lo, enquanto declamava, irradiando prazer do rosto todo, com os olhos semicerrados e movendo os dedos em caracol.
Minha mãe estava convencida de que, para as nossas necessidades, aquilo que Pinzone nos ensinava era suficiente; e talvez achasse, ao ouvir-nos declamar os enigmas de Croce e Stigliani, que já era até de sobra. De outra maneira pensava tia Scolastica, que, não conseguindo impingir à minha mãe o seu predileto Pomino, se pusera a nos perseguir, a Berto e a mim. Mas nós, escorados na proteção de mamãe, não lhe dávamos ouvidos, e ela se irritava tanto que, se pudesse fazê-lo sem que a vissem ou ouvissem, com certeza nos espancaria até nos arrancar a pele. Lembro que, em certa ocasião, ao ir embora furiosa, como de hábito, deu comigo num dos quartos abandonados; segurou-me pelo queixo, que seus dedos apertaram com força, dizendo-me: “Lindinho! Lindinho! Lindinho!”, e, aproximando cada vez mais o rosto do meu, à medida que falava, e cravando os olhos nos meus, lançou, por fim, uma espécie de grunhido, rugindo entre os dentes:
— Focinho de cachorro!
Implicava sobretudo comigo, apesar de que eu me aplicasse, sem comparação, mais do que Berto nos absurdos estudos de Pinzone. Mas devia ser por causa da minha cara plácida e provocante e dos grossos óculos redondos que me haviam obrigado a usar, para endireitar um dos meus olhos, o qual, não sei por quê, tendia para olhar, por sua conta, em outra parte.
Esses óculos eram, para mim, uma verdadeira tortura. A certa altura, joguei-os fora e deixei o olho livre de olhar para onde mais lhe agradasse. De qualquer maneira, mesmo direito, bonito é que ele não me tornaria. Eu gozava de ótima saúde e isso me bastava.
Aos dezoito anos, meu rosto foi invadido por uma grande barba arruivada e crespa, em prejuízo do nariz, bastante pequeno, que acabou por se encontrar quase perdido entre ela e a testa, ampla e grave.
Talvez, se o homem tivesse a faculdade de escolher um nariz adequado ao seu rosto, ou se nós, vendo um pobre homem oprimido por um nariz grande demais, para a sua cara mirrada, pudéssemos lhe dizer: “Esse nariz fica bem em mim e vou pegá-lo”, talvez, digo, eu teria de bom grado trocado o meu, como também os olhos e muitas outras partes da minha pessoa. Mas, sabendo perfeitamente que isso não é possível, conformado com o meu aspecto, não me preocupava com ele.
Berto, ao contrário, bonito de cara e de corpo (ao menos, comparado comigo), não sabia afastar-se do espelho e se alisava e se acariciava, gastando um dinheirão com as gravatas mais novas, os perfumes mais requintados e a roupa de baixo e o vestuário, Para irritá-lo, certo dia, tirei do seu guarda-roupa uma casaca novinha em folha, um colete elegantíssimo, de veludo preto, a claque; e, com esses trajes, fui caçar.
Batta Malagna, enquanto isso, ia chorar, junto de minha mãe, as safras ruins, que o obrigavam a contrair dívidas onerosíssimas, para fazer frente às nossas despesas excessivas e às muitas obras de conserto de que, sem parar, necessitavam as propriedades rurais.
— Levamos outra boa surra! — dizia, todas as vezes, ao entrar.
A neblina destruíra as oliveiras no nascedouro, em Due Riviere; ou, então, a filoxera, os vinhedos do Sperone.
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