Os rumores aumentam quando Erik escreve uma carta ameaçadora, com algumas reivindicações para a nova diretoria: assegurar que o camarote nº5 seja destinado ao Fantasma da Ópera (que assina a carta) e receber um pagamento mensal, através de terceiros. Haveria um espírito afeito a coações escondido na principal casa de ópera de Paris?

A mensagem exige ainda que na apresentação de Fausto, marcada para dali a alguns dias, Margarida, a musa de Fausto, seja interpretada por Christine Daaé, e não pela principal soprano do elenco, a Carlotta. Erik quer apreciar a bela voz que tanto admira e aquilo que, justamente, fizera com que ele se apaixonasse por ela: o canto de Christine era tão belo quanto sua alma, o que não poderia ser dito da titular.

Sem que os gestores dessem bola para as ameaças, é a Carlotta quem sobe ao palco para protagonizar Fausto. Grande erro. Sua apresentação é um inaudito e fantástico fiasco, e a noite culmina em tragédia fatal quando o imenso lustre do teatro desaba sobre uma plateia lotada com as pessoas mais importantes de Paris.

No livro, o narrador de Leroux se mostra preocupado em, tal qual um jornalista, contar a história de forma objetiva, apostando até em esmiuçar pormenores em notas próprias de rodapé (recurso literário que, por volta de um século mais tarde, seria recuperado e radicalizado por autores como David Foster Wallace). A ideia é fazer com que o leitor acredite que tudo o que está no papel realmente aconteceu – e há certo êxito nesse sentido, afinal até hoje circulam lendas sobre fantasmas que habitariam o Garnier. “O Fantasma da Ópera existiu”, crava o narrador na primeiríssima linha do romance.

Ajudam a dar uma tessitura mais complexa à história as diversas conexões que existem entre o texto e episódios factuais, o que transforma numa característica bastante interessante o desafio de saber onde terminam dados concretos e começa a ficção. No prólogo, por exemplo, o narrador menciona que um corpo tinha sido achado no subterrâneo da ópera enquanto discos com gravações de grandes cantores estavam sendo ali enterrados. O corpo nunca existiu, mas os áudios, sim: foram lacrados e “guardados” em 1907 para serem reabertos em 2007, dando origem ao álbum Les Urnes de l’Opera.

A cena do lustre caindo e matando uma pessoa durante a apresentação também é fato, infelizmente. Em 1896, 21 anos depois de o Garnier ter sido inaugurado, o imenso candelabro principal se desprendeu e levou à tragédia. O problema estrutural ocorreu no contrapeso; há quem desconfie de uma criminosa sabotagem. Na ficção, Erik, o Fantasma, aproveita o momento de caos provocado pela queda do lustre para raptar Christine e impedir que ela viva um amor com Raoul. É aí que chegamos a outra Paris, uma bem diferente daquela dos cartões-postais.

HÁ UMA PARIS SUBTERRÂNEA que passa longe da atenção de muitos que visitam a capital francesa – muitos que olham apenas para cima, para o topo da torre, para o alto da Sacré-Coeur, dificilmente se interessariam por vasculhar o que está abaixo de seus pés. O passeio por essas catacumbas, muitas vezes feito de maneira clandestina, atrai outros tantos visitantes, curiosos por entender a Cidade Luz por meio dos vestígios ocultos de seu passado. Sob as ruas parisienses há centenas de quilômetros de túneis construídos por mineradores que exploravam pedreiras da região, ossuários improvisados após a superlotação de cemitérios no século XVIII e galerias que ocasionalmente recebem até exposições artísticas.

Essa Paris oculta é uma das chaves para entendermos O Fantasma da Ópera. É nas catacumbas que a parte mais dramática do romance se desenrola. Graças ao conhecimento dos caminhos obscuros que lhe servem de moradia, Erik consegue desenvolver soluções cerebrais, passagens entre espaços que, numa primeira análise, parecem dispositivos mágicos – sim, aqui está aquela engenhosidade que é uma das marcas de Leroux. E de onde vem todo esse domínio do terreno? Não bastasse a Ópera ter se tornado a casa de Erik, que se isola da sociedade por conta de seus mistérios, descobrimos também que ele foi um dos primeiros mestres de obra a trabalhar na construção do palácio Garnier e que, misteriosa e solitariamente, seguiu com as atividades quando as obras foram interrompidas, por ocasião de três episódios históricos que estão correlacionados, nos anos de 1870-71: a guerra franco-prussiana, o cerco à cidade e a Comuna de Paris.

As marcas da Comuna são exploradas por Leroux. Se visto da rua, o Garnier é um exuberante palácio onde as mais belas óperas são interpretadas, mas sob toda a sua imponência, ao menos segundo o romance, o que temos é a memória de uma das maiores carnificinas da Europa. Ali estão corredores secretos, abertos para permitir que carcereiros conduzissem prisioneiros a masmorras, e os ossos dos “desafortunados que, na época da Comuna, foram massacrados nos porões da Ópera”.

A Comuna de Paris foi uma insurreição que tentou implementar em parte da cidade um sistema comunitário de autogestão, numa época em que a França estava severamente abalada após a esmagadora derrota na guerra franco-prussiana. Era “um governo autônomo e progressista que trouxe liberdade para os parisienses, entre os quais muitos acreditavam ser ‘donos de suas próprias vidas’ pela primeira vez. Famílias de bairros proletários passeavam pelos beaux quartiers da capital, imaginando uma sociedade mais justa”, escreve o historiador John Merriman.1

O movimento durou apenas dois meses e terminou com um gigantesco massacre. Quando as forças do governo conseguiram se reorganizar e avançaram contra os comunnards – como eram chamados os membros da Comuna –, deixaram oficialmente 17 mil mortos, mas estimativas indicam que esse número pode ter chegado a 35 mil; além disso, outras dezenas de milhares de cidadãos precisaram se exilar, foram presos ou deportados para a Nova Caledônia.

Um dos últimos polos de resistência da Comuna foi o bairro de Montmartre, onde a matança provou-se mais intensa. Alguns anos depois do massacre, a Igreja Católica, aliada do governo, numa espécie de revanche ou provocação aos rebeldes, ergueu no local a basílica du Sacré-Coeur, um dos mais belos lugares da cidade, esteticamente falando, porém uma das mais gritantes contradições entre a Paris dos cartões-postais e a Paris subterrânea.

O que nos leva de volta às catacumbas onde vive Erik.

Não são os túneis, salas e saguões que existem sob o Garnier que mais chamam atenção no subterrâneo do lugar. O que impressiona mesmo é a existência de um lago debaixo do imenso teatro. “Eu tinha certeza de que tudo aquilo existia, a visão daquele lago e daquela barca subterrâneos não tinha nada de sobrenatural. Mas pense nas condições excepcionais em que alcancei aquela margem. Mais medo não sentiam as almas dos mortos ao chegarem ao Estige. Caronte certamente não era mais lúgubre nem mais mudo do que a forma de homem que me transportou na barca”, surpreende-se Christine, ao começar a despertar nos subterrâneos, avistando o lago e lembrando o rio que dá acesso ao inferno, na mitologia grega, e do barqueiro que conduzia as almas até ele.

No romance, há quem diga conhecer o lago, apesar de não saber exatamente onde fica. Surpreendentemente, esse lago é um dos elementos presentes em O Fantasma da Ópera que encontram lastro na realidade.