Em 1861, enquanto operários trabalhavam na fundação do prédio, notaram que numa parte do terreno pantanoso havia um fluxo de água que parecia nunca cessar. A solução, então, foi criar um grande tanque de pedra para contornar o problema. Uma visita de Leroux aos subterrâneos do Garnier e a surpresa que teve ao encontrar o lago, bem como seu espanto diante da complexidade dos túneis, pode ter sido um dos fatores que o levaram a escrever o romance.

Parte dessas informações também aparecem nas notas de rodapé desta edição da obra. Aliás, sugiro fortemente ao leitor que não ignore essas notas. Muitas proporcionam uma verdadeira aula sobre a cultura e a arte parisiense – só nesse trecho, por exemplo, são doze os ganchos para pequenas aulas sobre a história da música clássica: “Gounod regera A marcha fúnebre para uma marionete; Reyer, sua bela abertura de Sigurd; Saint-Saëns, a Dança macabra e um Devaneio oriental; Massenet, uma Marcha húngara inédita; Guiraud, seu Carnaval; Delibes, A valsa lenta de Sylvia e os pizzicati de Coppelia; as srtas. Krauss e Denise Bloch haviam cantado: a primeira, o bolero das Vésperas sicilianas; a segunda o brindisi de Lucrécia Bórgia” –, além de, como já vimos, o autor desdobrar o próprio texto em algumas delas. Por meio de seu narrador, Leroux nos dá também algumas lições sobre o que é ser um morador de Paris: “Nunca será parisiense aquele que não aprender a pespegar uma máscara de alegria sobre seus desgostos e o véu da tristeza, do tédio ou da indiferença sobre sua alegria íntima. Ao saber que um de seus amigos está em dificuldade, não tente consolá-lo; ele lhe dirá que já está consolado; mas se lhe aconteceu alguma coisa boa, evite felicitá-lo: ele julga sua boa sorte tão natural que se espantará que comentem isso com ele. Em Paris, estamos sempre num baile de máscaras, e nunca seria no foyer do balé que personagens tão ‘esclarecidos’ como os srs. Debienne e Poligny cometeriam a gafe de mostrar sua aflição, que era real”, escreve em uma dada passagem, evidenciando o certo ar blasé que muitas vezes parece pairar sobre a capital francesa.

Em outro momento, soa a corneta para criticar uma certa permissividade da França, colocando no texto uma questão que permanece causando discussões entre os locais até hoje, e que se manifesta na obra de importantes escritores contemporâneos, como Michel Houellebecq: a relação com os estrangeiros que passam por Paris ou a escolhem como cidade para viver. “O Persa”, personagem responsável por levar o romance a uma interessante incursão pelo mundo árabe, “como Raoul, estava naturalmente de fraque. Só que, enquanto Raoul usava uma cartola, o Persa tinha na cabeça um barrete de astracã, já mencionado por mim. Aquilo era uma excrescência no código de elegância que regia as coxias, onde é exigida a cartola, mas ninguém ignora que na França permite-se tudo aos estrangeiros: o boné de viagem aos ingleses, o barrete de astracã aos persas”.

Ainda sobre o texto, surpreendem as generosas doses de humor que Leroux emprega ao longo da narrativa. Antes que a tragédia se consuma, o episódio do fiasco da principal soprano na noite do Fausto tem seus momentos de graça, com a Carlotta desafinando e coaxando. Mas as melhores risadas brotam, principalmente, durante alguns diálogos, como este:

– Senhorita! -– declarei. – Foi o próprio monstro que a amarrou… É ele que irá desamarrá-la… Tem apenas de representar a cena necessária para isso…! Não esqueça que ele a ama!

– Oh! – ouvimos. – Como eu poderia esquecê-lo?

Uma ironia inesperada, sobretudo no momento dramático em que esse diálogo acontece.

Ainda com resquícios do Romantismo, as relações amorosas de O Fantasma da Ópera são um tanto idealizadas. Raoul vislumbra em Christine a amada praticamente intocável, enquanto Erik projeta na cantora um amálgama do belo – uma junção de beleza física, beleza artística e beleza da alma, no caso. Christine ama mesmo Raoul, num flerte que proporciona frases como “beijou o pobre Raoul como uma irmã” e declarações como “Oh, Raoul, como seremos felizes…! Vamos brincar de futuro maridinho e futura mulherzinha…!”. No entanto, também tem uma parte de seu coração dedicada a Erik, com quem constrói um relacionamento que hoje não teríamos problemas em chamar de abusivo, marcado pela chantagem, pela violência emocional e até por um sequestro, vale lembrar.

Se Christine não se entrega logo a Raoul é porque “o gênio da música a proíbe de se casar”. Em uma relação que nasce nas catacumbas da Ópera e com direito a imposições como “Christine, você tem que me amar!”, ao que a cantora responde “Como pode dizer isso? A mim, que canto unicamente para você!”, chega uma hora em que a própria personagem se sente fatigada. No entanto, também sente medo de que, ao desagradar o Fantasma, coisas horríveis aconteçam: “Se eu não for, será ele que virá me buscar com sua voz. Ele me arrastará para sua morada, debaixo da terra, e se porá de joelhos diante de mim, com sua caveira! E dirá que me ama! E cairá em prantos! Ah, essas lágrimas, Raoul! Essas lágrimas nos dois buracos da caveira. Não posso mais ver essas lágrimas correrem!”, desabafa Christine.

Erik não tem essa personalidade por mero acaso. Se a sua famosa máscara “evocava a máscara natural do Mouro de Veneza”, ou seja, Otelo, o ciumento e vingativo personagem de Shakespeare, o que está por trás dela o motiva em seus atos. A aparência grotesca de Erik fez com que fosse rejeitado por todos e procurasse por um abrigo distante da sociedade. O isolamento acabou por levar também sua alma em direção às trevas, sendo que a única luz que permaneceu acesa para guiá-lo em algum caminho belo era o da música – a música que saía de suas cordas vocais, a música que encantava multidões no Garnier –, além do vinho, pois a adega com crus franceses evidencia seu bom gosto para a bebida. Ao se aproximar de Christine, busca de forma bruta alcançar aquela que, como já foi dito, incorpora tudo o que ele poderia vislumbrar de belo. Além disso, é uma tentativa de manter perto de si alguém que, enfim, dera-lhe atenção e o tratara como gente.

“Pobre e infeliz Erik? Devemos lastimá-lo? Amaldiçoá-lo? Ele só pedia para ser alguém como todo mundo! Mas era demasiado feio! E foi obrigado a esconder seu gênio ou usá-lo para executar truques, ao passo que, com um rosto comum, teria sido um dos mais nobres da raça humana! Possuía um coração no qual cabia o império do mundo e no fim viu-se obrigado a se contentar com um porão. Com efeito, é digno de pena o Fantasma da Ópera!” A série de questionamentos ecoa na voz da própria Christine já no final da saga: “Pobre Erik! Pobre Erik!”

AO FINAL DA SAGA escrita por Leroux, digo.