O Fantasma da Ópera foi muito além do livro lançado pelo francês no começo do século XX. Apesar de a história seriada ter sido recebida com alguma empolgação pelo público, foram suas adaptações que garantiram a fama da obra e asseguraram que a trama se mantivesse vivíssima. A primeira versão no cinema chegou em 1925, numa produção norte-americana dirigida por Rupert Julian e estrelada por Lon Chaney. Vieram outras, inclusive uma estranhíssima mistura com Fausto na adaptação que Brian De Palma fez em O fantasma do paraíso, de 1974. A mais recente dessas transposições estreou em 2004, no Reino Unido, foi dirigida por Joel Schumacher, contou com Gerard Butler e Emmy Rossum no elenco e levou o mesmo nome do livro. É comum que a cada versão os diretores imprimam nuances diferentes à personalidade dos personagens, o que acaba interferindo, claro, na maneira como a trama se eterniza na mente do espectador.
Contudo, foi no teatro que a história ganhou uma proporção ímpar. É difícil estimar quantas foram as vezes que o texto de Leroux foi levado ao palco, e apenas uma dessas adaptações já seria suficiente para consagrar o nome do francês: a assinada pelo britânico Andrew Lloyd Webber, que estreou em 1986, na Broadway, e se tornou a peça mais bem-sucedida de toda a história do teatro. Mais de 140 milhões de pessoas assistiram ao espetáculo, que já foi levado para 35 países – entre eles o Brasil. Em 2006, a montagem superou Cats e se tornou a produção mais longeva na história da Broadway – onde segue em cartaz. A estimativa é que apenas essa adaptação de O Fantasma da Ópera já tenha rendido ao menos 6 bilhões de dólares. Não bastasse, gente como Paul Stanley, da banda Kiss, Paul Williams e o grupo finlandês Nightwish já emprestou seu talento para a saga de Erik, Christine e Raoul.
Se uma boa história conta, na verdade, ao menos duas histórias, e uma cidade interessante como Paris pode ser desdobrada em ao menos outras duas cidades, não é diferente com O Fantasma da Ópera. E não deixa de ser curioso que uma história que se passa sobretudo nas obscuras catacumbas do palácio Garnier tenha se transformado em uma das mais belas obras teatrais da história, aplaudida em palcos de todo o mundo.
RODRIGO CASARIN2
1. A Comuna de Paris – 1871: Origens e massacre (Rio de Janeiro, Anfiteatro, 2015). ↩
2. Rodrigo Casarin é jornalista e edita o blog de livros Página Cinco (Uol). Já colaborou com veículos como Valor Econômico, Carta Capital, Suplemento Literário Pernambuco, Aventuras na História e Jornal Rascunho, escrevendo principalmente sobre o universo literário. É autor de Punk: O protesto não tem fim (com Igor Antunes Penteado). Em 2018, integrou o júri do Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa.↩
O FANTASMA DA ÓPERA
AO MEU VELHO IRMÃO JO
que, sem ter nada de um fantasma,
não deixa de ser, como Erik,
um Anjo da Música.
Com toda a afeição,
Gaston Leroux
PRÓLOGO
Em que o autor desta obra singular revela ao leitor como
se convenceu de que o Fantasma da Ópera existiu de verdade
O FANTASMA DA ÓPERA existiu. Não foi, como se julgou por muito tempo, inspiração de artistas, superstição de diretores nem criação grotesca das mentes exaltadas das demoiselles do corpo de baile,1 de suas mães, das lanterninhas,2 do pessoal dos camarins ou da zeladora.
Sim, embora tivesse o aspecto de um verdadeiro fantasma, isto é, de uma sombra, ele foi todo carne e osso.
Tão logo comecei a pesquisar nos arquivos da Academia Nacional de Música,3 intrigou-me a surpreendente coincidência entre os fenômenos atribuídos ao Fantasma e um dos dramas mais misteriosos e rocambolescos, e não demorei a conjecturar a possibilidade de explicar racionalmente este por aquele. Os acontecimentos datam de apenas trinta anos e não seria nada difícil encontrar ainda hoje, no próprio foyer do balé,4 velhinhos bastante respeitáveis, de cuja palavra não cogitaríamos duvidar, que se lembram como se fosse ontem das condições misteriosas e trágicas do rapto de Christine Daaé, do desaparecimento do visconde de Chagny e da morte de seu irmão primogênito, o conde Philippe, cujo corpo foi encontrado nas margens do lago que se estende sob a Ópera, para os lados da rua Scribe.5 Até hoje, contudo, nenhuma dessas testemunhas julgara dever misturar a tais pavorosas peripécias o lendário personagem do Fantasma da Ópera.
A verdade impregnou lentamente meu intelecto, abalado por uma investigação que a todo instante se chocava com acontecimentos que, à primeira vista, podiam ser considerados sobrenaturais, e, mais de uma vez, estive perto de abandonar uma tarefa em que me extenuava, perseguindo – sem jamais agarrá-la – uma imagem vã. Por fim, tive a prova de que meus pressentimentos não me haviam enganado, e meus esforços foram plenamente recompensados no dia em que adquiri a certeza de que o Fantasma da Ópera havia sido mais do que uma sombra.
Nesse dia, passei longas horas na companhia das Memórias de um diretor, obra ligeira de Moncharmin, cético radical que, durante sua passagem pela Ópera, não compreendeu nada do tenebroso comportamento do Fantasma, que pintou e bordou com ele, justamente no momento em que ele se tornava a primeira vítima da curiosa operação financeira realizada no “envelope mágico”.
Desesperado, eu acabava de sair da biblioteca quando encontrei o simpático administrador da nossa Academia Nacional, que proseava num corredor com um velhinho irrequieto e frajola, a quem me apresentou alegremente. O sr. administrador estava a par de minhas pesquisas e sabia da impaciência com que eu tentara descobrir o paradeiro do juiz de instrução6 do famoso caso Chagny, o sr. Faure. Ninguém sabia o que fora feito dele, se estava morto ou vivo; e eis que, de retorno do Canadá, onde passara quinze anos, seu primeiro ato em Paris fora pedir uma poltrona de favor à administração da Ópera. Aquele velhinho era nada mais nada menos que o sr. Faure.
Passamos boa parte da noite juntos e ele me contou todo o caso Chagny, segundo sua compreensão na época. Na falta de provas, fora obrigado a concluir pela loucura do visconde e pela morte acidental do irmão mais velho, mas continuava persuadido de que um drama terrível se dera entre os dois irmãos, tendo Christine Daaé como pivô. Não soube me dizer os paradeiros de Christine nem do visconde. Claro, quando me referi ao Fantasma, apenas riu.
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