Estava igualmente informado das singulares manifestações que então pareciam atestar a existência de uma criatura excepcional, que elegera como domicílio um dos recantos mais misteriosos da Ópera, e tinha conhecimento da história do “envelope”, mas não vira em nada disso algo capaz de prender a atenção do magistrado encarregado de instruir o processo Chagny, e já foi muito ter reservado alguns minutos para colher o depoimento de uma testemunha que se apresentara espontaneamente, afirmando ter tido o ensejo de conhecer o Fantasma. Esse personagem – a testemunha – não era outro senão aquele que Paris inteira cognominava “o Persa”, figura conhecida de todos os assinantes da Ópera. O juiz tomara-o por um desmiolado.

Imaginem qual não foi meu interesse por essa história do Persa. Cogitei encontrar, se ainda fosse possível, aquela valiosa e original testemunha. Bafejado pela sorte, consegui localizá-lo em seu pequeno apartamento da rua de Rivoli, que ele não deixara desde a época daqueles fatos e onde viria a morrer cinco meses após minha visita.

A princípio duvidei; mas quando, com uma candura infantil, o Persa me contou tudo o que sabia pessoalmente acerca do Fantasma e, com toda a propriedade, me apresentou as provas de sua existência, e sobretudo a estranha correspondência de Christine Daaé – correspondência que esclarecia com tanta clareza seu terrível destino –, então não me foi mais possível duvidar! Não! Não! O Fantasma não era um mito!

Sei perfeitamente que me replicaram que tal correspondência talvez não fosse autêntica, que poderia ter sido forjada de ponta a ponta por um homem com a imaginação decerto alimentada pelos contos de fadas mais sedutores, mas por sorte me foi possível encontrar a caligrafia de Christine fora do famigerado maço de cartas e, consequentemente, proceder a um estudo comparativo que varreu todas as minhas hesitações.

Da mesma forma, documentei-me sobre o Persa, vindo assim a apreciar um homem honesto, incapaz de tramar algo para burlar a Justiça.

Em suma, era essa a opinião das personalidades que, de perto ou de longe, viram-se envolvidas no caso Chagny, os amigos da família, aos quais expus todos os meus documentos e perante os quais desenvolvi todas as minhas deduções. Da parte deles recebi os mais nobres incentivos, e, a propósito, permito-me reproduzir algumas linhas a mim endereçadas pelo general D…

Cavalheiro,

Recomendo vivamente que publique os resultados de sua investigação. Lembro bem que, algumas semanas antes do desaparecimento da grande cantora Christine Daaé e da tragédia que enlutou todo o Faubourg Saint-Germain,7 falava-se muito no Fantasma no foyer do balé, assunto que só foi abandonado, creio, depois desse episódio, que galvanizou a opinião pública. Mas, se for possível, como julgo ser após ouvi-lo, explicar a tragédia por meio do Fantasma, peço-lhe, cavalheiro, fale mais sobre ele. Por mais misterioso que a princípio ele possa parecer, será sempre mais razoável do que a história sinistra em que pessoas mal-intencionadas pretenderam ver se dilacerarem até a morte dois irmãos que se adoraram a vida inteira…

Creia-me etc.

Em suma, com meu dossiê nas mãos voltei a percorrer o vasto domínio do Fantasma, o formidável império que ele erigira, e tudo que meus olhos tinham visto, tudo que meu raciocínio descobrira, ia corroborando admiravelmente os documentos do Persa – quando um achado maravilhoso veio coroar de maneira definitiva meus trabalhos.

Todos lembram que, escavando recentemente o subsolo da Ópera para lá enterrar as vozes gravadas dos artistas,8 a picareta dos operários descobriu um cadáver; ora, tive imediatamente a prova de que aquele cadáver era o do Fantasma da Ópera! Fiz com que o próprio administrador apalpasse aquela prova, sendo-me indiferente os jornais agora afirmarem tratar-se de uma vítima da Comuna.9

Os desafortunados que, na época da Comuna, foram massacrados nos porões da Ópera não foram enterrados daquele lado; direi onde é possível encontrar suas ossadas, bem longe dessa cripta imensa onde durante o cerco se acumulou todo tipo de gêneros alimentícios. Fui colocado nessa pista justamente quando procurava os restos mortais do Fantasma da Ópera, os quais não teria encontrado sem o acaso inaudito da inumação das vozes vivas!

Mas voltaremos a falar desse cadáver e do que convém fazer com ele: o que me interessa agora é terminar este imprescindível prólogo agradecendo aos modestíssimos colaboradores, que – tal como o sr. comissário de polícia Mifroid (convocado para realizar as primeiras apurações por ocasião do desaparecimento de Christine Daaé), ou ainda o sr. ex-secretário Rémy, o sr. ex-administrador Mercier, o sr. ex-mestre do coro Gabriel e, mais particularmente, a sra. baronesa de Castelot-Barbezac, ex-“pequena Meg” (que não ruborizou por isso), estrela mais encantadora do nosso admirável corpo de baile, filha mais velha da digníssima sra. Giry, esta ex-lanterninha do camarote do Fantasma, já falecida – me foram da mais valiosa ajuda, e graças a eles poderei reviver, junto com o leitor e em seus mais ínfimos detalhes, horas de puro amor e terror.10

1. Num balé, o corpo de baile é o grupo de bailarinos e bailarinas não solistas.

2. Funcionárias encarregadas de mostrar os lugares aos espectadores, também conhecidas como “vagalumes”.

3. A Academia Nacional de Música, fundada em 1669 como Academia Real de Música, instituição voltada para a difusão da ópera, veio a se tornar a atual Ópera de Paris (ou Palais Garnier; ver nota 61).

4. Sala situada atrás do palco, com decoração opulenta e uma atmosfera de intimidade ambígua. No séc.XIX, os assinantes encontravam as bailarinas no foyer e lhes ofereciam dinheiro e proteção. Essa prática foi proibida a partir de 1930.

5. A rua Scribe foi aberta em 29 de setembro de 1860. Fez parte da reforma da Chaussé d’Antin empreendida no séc.XIX e que culminou com as transformações de Paris sob o Segundo Império e a construção da Ópera Garnier. Seu nome é uma homenagem ao dramaturgo e libretista francês Eugène Scribe. Toda a fachada oeste da Ópera, que compreende a biblioteca-museu, estende-se ao longo da rua Scribe.