E não dá mais para saber de onde vêm o sentimentalismo e os impulsos regressivos. Sentimos apenas que eles estão no ar — no ar da escrita. E a escrita é de Nick.
Talvez este seja o parágrafo mais famoso do livro:
Suponho que ele já tinha escolhido o nome há tempos, mesmo então. Seus pais eram fazendeiros preguiçosos e fracassados — sua imaginação nunca os reconhecera como pais. A verdade era que Jay Gatsby de West Egg, Long Island, havia saído da própria concepção platônica de si mesmo. Ele era um filho de Deus — frase que, se de fato significava alguma coisa, era exatamente isso — e devia ocupar-se dos negócios de seu Pai, a serviço de uma beleza vasta, vulgar e libertina. Então ele inventou precisamente o Jay Gatsby que um menino de dezessete anos seria capaz de inventar, e foi fiel a essa concepção até o fim.
Ele supõe — mas isso não o impede de dar prosseguimento à revelação da “verdade”. Essa “verdade” expressa sobre Gatsby — em que ele, de forma audaciosa, se não blasfema, invoca a autoridade de Platão e Deus — nasce do fato de que Gatsby jamais aceitara seus pais enquanto tais. Tal como Rudolph Miller, como o próprio Fitzgerald e tantos outros personagens voluntariamente órfãos da história americana, na realidade e na ficção. As razões para essa determinação ou propensão de renegar os pais — de forma mais específica, um repúdio à autoridade, prescritiva e proibitiva, dos pais biológicos ou Fundadores — vai do prático (livrar-se da identidade de imigrante) ao ideológico (desfazer-se do peso coercitivo, restritivo e predeterminado do passado). Não sou ingênuo de sugerir que a propensão de renegar os pais é unicamente americana — afinal, os “Romances familiares” de Freud já dão a entender que é uma característica mais ou menos universal; mas não há dúvida de que tem uma força incomum na América. Mais que isso, recebe aqui um aval cultural específico. De fato, é incorporada à literatura americana como uma obrigação e pré-requisito para alcançar uma identidade nacional. “Nossa geração é retrospectiva. Ela ergue os sepulcros dos nossos pais.” Assim começa o primeiro trabalho de Ralph Waldo Emerson, o ensaio “Natureza”. Erguer os sepulcros dos pais é exatamente o que os americanos não deveriam estar fazendo, na opinião de Emerson: os Pais Fundadores (e os países fundadores, como a Inglaterra) devem ser esquecidos. “Por que não podemos também usufruir de uma relação original com o universo? […] O sol ademais brilha hoje […]. Há novas terras, novos homens, novas ideias.” Emerson, e tantos outros escritores que o seguiram, valorizava a autossuficiência, a autodeterminação e a invenção de si próprio — as metáforas são inúmeras. O “self-made man” americano é prestigiosamente legitimado e encorajado. (O livro Self-made man, de Greeley, foi publicado em 1862.) Jay Gatsby é um jovem tipicamente americano.
Mas e quanto a Deus e Platão? Aqui pretendo evocar algumas passagens do livro para destacar uma característica particular do vocabulário de Nick. Perto do final, após resumir as providências legais e logísticas que se seguiram à morte de Gatsby, Nick escreve: “Mas toda essa parte me parecia remota e desimportante”. Mais próximo ainda do final, ele faz referência às “casas insignificantes” que se dissolviam conforme a lua subia no céu. Entre os prefixos de negação “de” e “in”, não há grande diferença: em ambos os casos, evocam algo não essencial. Quando Nick imagina o estado de espírito de Gatsby, que aguarda uma ligação telefônica de Daisy e em vez disso recebe uma visita de Wilson, ele se torna um tanto metafísico.
Sou da opinião de que o próprio Gatsby estava ciente de que ninguém lhe telefonaria, e talvez nem se importasse mais. Se isso é verdade, deve ter percebido que perdera seu bom e velho mundo, pagando um preço alto por viver tanto tempo com um único sonho. Deve ter erguido os olhos para um céu desconhecido por entre as folhas ameaçadoras, e estremecido ao notar que a rosa é uma coisa grotesca e que a luz do sol castiga violentamente a grama que acaba de brotar. Um novo mundo, palpável sem ser real, onde vagavam pobres fantasmas, respirando sonhos como se fossem ar… como aquela figura cinzenta e fantástica que deslizava em sua direção por entre as árvores amorfas.
“Palpável sem ser real” é uma clara distinção neoplatônica (o verdadeiro Real deve ser encontrado, ou buscado, no reino das Ideias ou Formas imutáveis). Mas Nick descreve algo mais do que um momento de pânico existencial, tal como relatado por Sartre em A náusea, quando Roquentin, encarando uma árvore, experimenta a terrível sensação da absurda e horrenda gratuidade das coisas — uma epifania negativa na qual a matéria sem significado se torna monstruosa, “ameaçadora” e “grotesca”. Para Gatsby, pensa Nick, é assim que o mundo vazio e destituído de seu sonho deve ter se revelado; para Nick, talvez, é assim que o mundo sem Gatsby, sem as suas fantasias obstinadas, porém condenadas, está parecendo.
Esse trecho é seguido pela descrição de Nick do que viu ao correr para a piscina onde Gatsby fora alvejado. “Havia um movimento débil e quase imperceptível na água conforme ela vertia de um cano, abrindo caminho rumo ao escoadouro na outra extremidade.
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