Em meio a pequenas marolas que mal podiam ser chamadas de ondas, o colchão ocupado boiava à deriva. Uma breve rajada de vento que mal corrugaria a superfície da água era suficiente para perturbar acidentalmente seu trajeto já acidental.” [Grifo meu.] Num livro repleto de maus motoristas e acidentes de carro, incluindo a colisão fatal que precipita a conclusão catastrófica, a palavra em itálico é muito apropriada. Mas a repetição calculada serve para nos lembrar o significado mais geral e filosófico da palavra — exato e não essencial. Nick conta que, quando Gatsby vai visitar Daisy, ele sabe que está ali por um “gigantesco acidente”: de propósito ou não, ele escolhe a expressão mais adequada, já que seu relacionamento termina com e por causa de um “gigantesco acidente”, este de uma espécie diversa e horrivelmente literal. Terá sido tudo uma questão “acidental”, do começo ao fim? Agora que Gatsby está morto, é como se Nick tivesse que se defrontar com um universo inteiro de casualidade. Desimportante. Insignificante. Quando Tom Buchanan, confiante de haver exposto Gatsby como simples criminoso, dispensa desdenhosamente Gatsby e Daisy para que voltem no mesmo carro, Nick escreve: “Eles saíram sem dizer palavra, despedaçados e acidentados”. Num mundo dominado pelos Buchanan, a pura contingência reina absoluta, ameaçadora e grotesca.
No reencontro entre Gatsby e Daisy, relatado exatamente no miolo do livro, Nick conta que Gatsby às vezes “admirava seus bens com um ar deslumbrado, como se, na presença real e estarrecedora de Daisy, nada disso fosse verdadeiro”. Mais um exemplo de neoplatonismo disfarçado e uma realidade maior (ideal) que desaloja e menospreza, até mesmo desmaterializa, a mera realidade material. Não surpreende que Gatsby se sinta momentaneamente desnorteado. “A certa altura, ele quase tropeçou num lance de escadas.” No que diz respeito a Gatsby, a identidade do “real” e sua localização se tornam uma questão problemática e surpreendente. Há uma cena extraordinária em que Nick e Jordan encontram o homem dos Olhos de Coruja ligeiramente bêbado na biblioteca, e ele passa a tecer elogios admirados.
— O que acham? — ele perguntou num impulso.
— Do quê?
Ele apontou para as estantes de livros.
— Disso tudo. Aliás, nem precisam se incomodar em ir checar. Eu já fui. São todos verdadeiros.
— Os livros?
Ele assentiu com a cabeça.
— Absolutamente verdadeiros: com páginas e tudo. Pensei que não seriam mais do que belas caixas de papelão. De fato, são totalmente verdadeiros. Páginas e… veja! Deixe-me mostrar.
Dando por certo nosso ceticismo, ele correu até uma prateleira e voltou com o primeiro volume das Stoddard lectures.
— Viu só? — ele exclamou, em triunfo. — É um legítimo exemplar de matéria impressa. Me enganou em cheio. Esse cara é um perfeito Belasco. É um triunfo. Quanto esmero! Quanto realismo! Sabe quando parar, também; não chegou a cortar as páginas. Mas o que vocês queriam? O que esperavam?
David Belasco foi um produtor da Broadway famoso pelo realismo de seus cenários. Gatsby teatraliza a si mesmo e seu ambiente, e muitas vezes é difícil distinguir qual parte do espetáculo — o quanto do que ele exibe — é “real”. Às vezes, quando se está diante do que julga ser o artifício mais óbvio — os livros da biblioteca ou o seu relato de vida embaraçosamente clichê, que não só desafia a credulidade como a supera por completo — é que se percebe a autenticidade: “São verdadeiros […]. Absolutamente verdadeiros”. “Então era tudo verdade.” Dessa forma, talvez devêssemos procurar pelo “real” onde menos se espera, ao menos quando se trata de Gatsby (e da América), a fim de discernir o mérito da libertinagem, o valor do vulgar.
Cabe deter-se por um instante na palavra: “absolutamente”. É a primeira coisa que Jordan Baker diz na cena de abertura, tão fora de contexto que causa um sobressalto em Nick; ela também está, em suas palavras, “em treinamento absoluto”.
1 comment