Ao aproximar-se da casa de Nick, Daisy lhe pergunta, bem-humorada: “É aqui mesmo que você mora, meu querido? Tem certeza absoluta?”; e em outra ocasião ela compara Nick a “uma rosa absoluta” — seria difícil imaginar um retrato menos preciso da figura empertigada e retraída que era Nick. Sem dúvida, “absolutamente” se tornou uma dessas palavras vazias que fazem parte do linguajar pedante de determinado estrato social, ou mesmo de um dado período, e sem nenhum significado conceitual. Por isso não devemos nos debruçar na palavra nem lhe atribuir maior amplitude quando o homem dos Olhos de Coruja ressalta com admiração a absoluta realidade dos livros de Gatsby. Mas é claro que há no discurso narrativo de Nick uma avidez por algo absoluto, essencial, algo que seja Real de um modo mais do que contingente, material e “acidental”. Há um anseio teológico e metafísico — apesar de confuso e residual — em meio a esse desejo de acreditar em alguma forma de deslumbramento que compense a tristeza pela qual ele se vê cada vez mais cercado, e por isso Nick invoca Deus e Platão de forma deliberada e corajosa, em sua elegia ao criminoso sentimental de terno cor-de-rosa. No final de O leilão do lote 49, de Thomas Pynchon, a heroína Édipa Maas cai numa crise existencial que envolve nada menos do que o significado da América.
Outra forma de significado por trás do óbvio, ou nenhum significado. Édipa no êxtase orbital de uma verdadeira paranoia, ou um Tristero de verdade. Porque, ou havia algum Tristero por trás da aparente herança que eram os Estados Unidos da América, ou só havia o mero país: e, se só havia o país, então o único modo de Édipa prosseguir e nele ter alguma relevância era como uma estranha, fora dos trilhos, imersa por inteiro na paranoia.d
Nick não é nenhuma Édipa e Gatsby não é o Tristero (uma ambígua sociedade secreta que atua por trás ou além do alcance das estruturas de poder estabelecidas). Mas há uma semelhança na postura, na necessidade e nas alternativas concebidas, uma semelhança perceptível que pode ser encontrada em boa parte da literatura americana. Desde a época dos puritanos, a ideia de que “só havia o país” passou a ser intolerável e inaceitável. Devia haver outro “significado por trás do óbvio”. Pode-se descobrir e recorrer à saída puritana (Deus) ou à transcendental (Platão), mas, de uma forma ou de outra, o impulso de fazê-lo, ou o medo de se ver incapaz de fazê-lo, é recorrente. Ele domina e preocupa Nick, tal qual Édipa Maas, mas se Nick não parece dar indicações de haver recorrido à alternativa paranoica de Édipa, pode-se dizer que ele encontra refúgio na escrita e na fantasia para consolar-se num mundo pós-Gatsby. Ele vislumbra algumas das mais feias e sórdidas realidades sociais, sexuais e econômicas dentro da história que tem para contar, mas se recusa a deixá-las dominar sua narrativa como dominam a vida — se o fizessem, seria “só o país”. Em consequência, escreve Richard Godden, “sempre que as contradições sobre determinado tópico se tornam insustentáveis, ele transforma a aspiração social em ‘sonho’, a política sexual em ‘romance’ e traduz a luta de classes como ‘tragédia’” (Fictions of capital, Cambridge University Press, 1990, p. 92 — esse livro contém um dos ensaios mais impressionantes e profundos que já li sobre O grande Gatsby).
Quando Nick se apresenta ao leitor, ele fala da própria família com uma honestidade tão espontânea e desarmada que é fácil ignorar as implicações do que ele revela.
Venho de uma família proeminente e próspera, estabelecida no Meio-Oeste há três gerações. Os Carraway são uma espécie de clã que, segundo a tradição, descende dos duques de Buccleuch, mas o verdadeiro fundador da linhagem foi o irmão de meu avô, que veio para cá em 1851, enviou alguém em seu lugar para a Guerra Civil e abriu a loja de ferramentas a que meu pai se dedica até hoje.
Por trás do vocabulário cosmético de “clã”, “tradição”, “duques” etc., esse “verdadeiro” esconde algo vergonhoso, covarde e materialmente oportunista. Perto do fim de The American scene,e tendo visitado o velho município de St. Augustine, na Flórida, Henry James conta como os ilustradores da revista tramaram, ou conspiraram, para dar à localidade um forte “caráter romântico”, investindo-a falsamente de todo tipo de panoramas e atributos de “antiguidade espanhola”. Isso fez Henry James pensar:
Isso revela claramente a lógica corriqueira de que, quando não se tem o que gostaria, é preciso dar a aparência de tê-lo, sobretudo adulterando o que se possui […]. Os guardiões dos valores verdadeiros me parecem impossíveis de localizar. A questão de fato retorna, de forma bastante interessante, à verdade geral da necessidade estética, no país, de valores muito maiores e específicos do que os que nossos hábitos, aspectos e planos de fato podem fornecer, tanto no passado quanto no presente e no futuro; dessa forma, quando a necessidade estética se mistura ao anseio patriótico, é preciso improvisar uma oferta, por meio de qualquer espécie de logro perdoável — é preciso espertamente “falseá-la” […]. Os ficcionistas improvisam, com a ajuda dos historiadores, um romântico passado local com seus próprios trajes, cumprimentos, lutas de espadas, galanterias e paixão; os dramaturgos constroem, em centenas de detalhes, uma afetada fábula — em torno da qual os elementos de confronto e contraste são os mais simples e superficiais possíveis — de que a vida das pessoas se acha por inteiro nos sujeitos, situações e efeitos do teatro; ao passo que os genealogistas retocam a cena com seus gratificantes palpites sobre a quantidade de famílias deste país que possuem sangue real […]. É ao público que essas impressões coletivamente nos remetem, e o que de novo prova ser o aspecto mais atraente; o público tão placidamente crédulo que a insinuação mais clara de uma fraude nunca fez vacilar, a um só tempo sentimental de tanto arraigamento e simplicidade que, julgando tudo perfeitamente esplêndido, se põe de joelhos para ser enganosamente enganado.
Nick por certo não acha “tudo perfeitamente esplêndido” e tampouco estou sugerindo, nem por um instante, mesmo da forma mais metafórica, que ele se põe de joelhos diante de Gatsby para ser “enganosamente enganado”. Mas há nele um quê do ficcionista e do dramaturgo descritos por James, e muitas vezes ele faz questão de não vacilar diante das mais claras insinuações de fraude. Ainda que ele mesmo se recuse a seguir o “logro” genealógico que parece prevalecer em sua família — preferindo dar um fim a isso, mesmo que en passant —, ele nunca chega a revelar, ou invocar, uma sociedade minimamente permeada pelo “logro”, para não dizer pela adulteração ou falseamento, em suas múltiplas formas.
Há sem dúvida muito logro arquitetônico visível, a começar pela mansão de Gatsby, que é “uma réplica fiel de um certo Hôtel de Ville na Normandia”. Na ambígua atmosfera em que Gatsby circula e age, réplicas fiéis não se distinguem de fatos falsificados. (Quando você frauda a World Series, cria um fato falsificado. Gatsby conhece o homem responsável pela fraude: é um de seus amigos mais próximos.) A mansão tem uma torre que, segundo a ótica por vezes objetiva de Nick, é “excepcionalmente nova sob uma camada rala de hera bruta”. Isso exemplifica à perfeição a prática da adulteração, do logro e do falseamento que mereceram a censura de James: a crua superposição de um falso verniz de antiguidade (a camada rala de hera bruta) a uma “excepcionalmente nova” construção — ou, como diria James, uma excepcionalmente nova América.
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