— Sou filho de uma família rica do Meio-Oeste, todos já falecidos. Fui criado nos Estados Unidos, mas educado em Oxford porque foi lá que meus antepassados sempre estudaram. É uma tradição familiar.

Ele me fitou com o canto do olho — e eu soube imediatamente por que Jordan Baker achara que ele estava mentindo. Gatsby acelerou as palavras “educado em Oxford”, ou mesmo as engoliu, sufocando-as, como se isso já lhe tivesse causado problemas no passado. Diante dessa hesitação, seu depoimento inteiro caiu por terra, e fiquei imaginando se não havia algo de estranho naquele sujeito, afinal de contas.

— Que parte do Meio-Oeste? — perguntei casualmente.

— San Francisco.

— Ah.

— Minha família inteira morreu e eu herdei uma fortuna.

Seu tom de voz era solene, como se a lembrança da súbita extinção de um clã ainda o assombrasse. Por um momento, julguei que ele estivesse brincando, mas só de fitá-lo me convenci do contrário.

 

Espera-se que Jordan Baker, ela mesma irremediavelmente mentirosa, seja capaz de reconhecer um mentiroso só de ouvi-lo, e de fato aquele trecho da história de Gatsby é puro logro, ainda que o Armistício de fato lhe tenha dado cinco meses em Oxford sem o lastro da tradição familiar ancestral. A questão é: em que medida Gatsby espera que acreditem nele? A evocação divina e o gesto teatral com a mão direita, seguido pelo olhar lateral… É claro que seu depoimento não se sustenta. Mas algo ainda mais estranho acontece depois. Quando ele situa San Francisco no Meio-Oeste — como se, na Grã-Bretanha, alguém dissesse ter vindo de Glasgow, na região de Midlandsf —, Nick diz apenas: “Ah”. Nesse momento, não há dúvida de que Gatsby está lhe oferecendo uma prova clara de sua fraude, e Nick escolhe não enxergá-la, ou melhor, não admite sua presença nem chama a atenção para ela. Há um jeito de dizer “ah” que é provavelmente usado por Nick e que expressa de forma tácita: “Sei que você está mentindo, e sei que você sabe que está mentindo, mas, por razões íntimas, talvez por constrangimento diante de uma hipocrisia tão descarada, ou algo mais inescrutável, escolhi não duvidar de sua afirmação”. É exatamente o que Nick repete quando Gatsby despede seus funcionários de forma repentina e inexplicável, contratando um bando de brutamontes deliberadamente grosseiros e desprezíveis. Gatsby “explica”: “São todos da mesma família e cuidavam de um hotelzinho”. Isso é, sem dúvida, mais uma tentativa de fornecer a Nick uma prova clara de sua fraude. Acho que Richard Godden está certíssimo ao sugerir que, através da súbita suspensão de suas opulentas, elegantes, cheias de artistas e ostensivamente extravagantes festas de verão, Gatsby está mostrando de propósito a Nick (e talvez também a Daisy, de forma indireta) seu verdadeiro ambiente, suas verdadeiras raízes criminosas — ele de certo modo esfrega a verdade no nariz de Nick. Que “enxerga”, mas prefere não ver, ou melhor, prefere concentrar-se em outras coisas.

Como Nick admitiu, ele sabe uma coisa ou outra sobre famílias que inventam antepassados e tradições, e até estende aos parentes de Gatsby seu termo pretensioso preferido, “clã”, uma denominação das mais impróprias para os “fazendeiros preguiçosos e fracassados” da família de Gatsby, mais até do que para os covardes Carraway que se esquivaram da guerra. É como se ao menos uma parte dele estivesse pronta para cair no logro de Gatsby — é de família, digamos assim. Outra parte sabe muito bem que estão lhe passando a perna — Gatsby não podia ter sido mais explícito —, mas ele é quase instantaneamente “convencido do contrário”. Podemos interpretar isso como uma ávida credulidade ou uma confiança esforçada. A desconfiança constante e o ceticismo inflexível não são as qualidades mais atraentes deste mundo, e há algo de favorável na gigantesca disposição de Nick em dar a Gatsby o benefício da dúvida. Seria impossível determinar o quanto disso consiste numa generosidade motivada pela atração ao indivíduo (e repulsa aos outros) e quanto disso é conivência, a voluntária suspensão da descrença impelida pelo desejo de “grandiosidade”. O que fica claro é que, confrontado pelos Buchanan deste mundo, Nick ratifica o logro de Gatsby, chegando inclusive a justificá-lo, ampliá-lo e exaltá-lo na narrativa. Ele é, sem dúvida, leal a Gatsby até o fim, cuidando de suas exéquias naquele triste funeral ao qual um ingrato e esquecido “Ninguém” comparece, além de uns poucos empregados, seu patético pai que “comia feito um porco” e o homem dos Olhos de Coruja, que duvidara da autenticidade dos livros de Gatsby e que faz um de seus epitáfios: “Aquele pobre filho da puta”. Nick escreve uma homenagem um pouco mais elogiosa.

 

 

Enquanto aguardava a chegada das provas do livro, em Roma, Fitzgerald escreveu a Maxwell Perkins: “É estranho dizer, mas a minha ideia sobre a imprecisão de Gatsby foi certeira […]. Eu mesmo não sabia como ele era nem no que estava metido […]. De qualquer forma, numa busca muito cuidadosa pelos arquivos (no caso, da mente de um homem) […], hoje conheço Gatsby melhor do que a minha própria filha. Meu instinto inicial era deixá-lo em segundo plano e fazer com que Tom Buchanan dominasse o livro […], mas Gatsby me cativou. Eu o tive por um tempo, depois o perdi, e agora sei que o tenho de novo” (circa 20 de dezembro de 1924). E pouco depois, numa carta a John Peale Bishop: “Você está certo sobre Gatsby ser indistinto e desigual. Eu mesmo nunca pude enxergá-lo com clareza” (9 de agosto de 1925).