Tão próxima quanto uma estrela da lua. Agora era de novo uma luz verde no cais. Sua coleção de objetos mágicos havia diminuído.
Talvez sim, talvez não. Ou talvez lhe tenha ocorrido algo diferente. Sem dúvida, o romance tem grande avidez por “objetos mágicos”, um gosto pelo “colossal” e uma preocupação em estabelecer e diferenciar os períodos — momentos, configurações — em que uma luz pode ser uma estrela de “significado colossal”, e não uma mera sinalização do cais. Essa é a versão de Nick Carraway, e podemos imaginar se, em retrospecto, a luz verde não teria brilhado mais para ele do que até possivelmente para Gatsby.
Dos inúmeros pratos servidos no banquete de Trimálquio, gostaria de citar um especificamente:
Foi colocado diante de nós, que estávamos ainda no antepasto, um prato tendo em cima uma cesta, na qual se via, encolhida, uma galinha de madeira, com as penas em leque como se estivesse chocando. Aproximaram-se logo dois escravos e, sempre ao som da música, introduziram as mãos na palha, tirando do interior dela ovos de pavão que distribuíram aos comensais. […]
Deram-nos colheres pesando não menos de meia libra, com as quais quebramos a casca dos ovos, feita com pasta de farinha. Quase atirei fora o que tocara, pois me pareceu ver saltar um pintinho. Mas ouvi um comensal de profissão dizer:
— Quem poderá adivinhar o tesouro que está aqui dentro?
Continuei, então, a quebrar a casca com a mão, e encontrei um papa-figo dos mais gordos, nadando em gema de ovo apimentada.a
Em outubro de 1922, os Fitzgerald se mudaram para uma casa em Great Neck, Long Island, uma península às margens da baía de Manhasset. A casa era modesta em comparação com as opulentas residências de verão das velhas e verdadeiramente ricas famílias americanas — os Guggenheim, os Astor, os Van Nostrand, os Pulitzer — situadas na península do outro lado da baía. Aquilo, é claro, forneceu a Fitzgerald a topografia básica do romance: de um lado, o novo-rico Gatsby e o velho-pobre Nick, de outro, os ancestralmente endinheirados Buchanan (mas o que seria esse “ancestral” nos Estados Unidos?). Ao serem transportados para o romance, os “Necks” originais se tornaram “Eggs”.
A trinta quilômetros da metrópole, um par de ovos gigantes, idênticos no contorno e separados apenas por uma singela baía, se projetam sobre a massa de água salgada mais dócil do hemisfério ocidental, esse grande celeiro inundado que é o estreito de Long Island. Eles não são perfeitamente ovais — como o ovo de Colombo, são achatados na ponta —, mas sua semelhança física deve ser fonte infinita de assombro para as gaivotas que os circundam. Para os que não voam, mais interessante é notar sua dessemelhança em todos os outros aspectos exceto a forma e o tamanho.
Esse é um dos questionamentos mais ricos e instigantes por trás do livro. Como resultado da “domesticação” do continente selvagem descoberto por Colombo, o que foi chocado? O que encontramos ao tirar a colher do grande ovo — ou seriam ovos — da América? Uma coisa repugnante, abortada, atrofiada e natimorta, passível apenas de se jogar fora? Ou um tesouro, algo especial (o papa-figo ou beccafico é considerado uma iguaria), maravilhoso e raro? Seriam os subprodutos da América tão “dessemelhantes” quanto esses dois Ovos sugerem, numa lógica em que os Buchanan de East Egg representam e incorporam uma espécie de materialismo voraz, autoindulgente e hipócrita que o sucesso implacável do capitalismo no século xix encorajou e propiciou, enquanto a aliança entre Nick e Gatsby em West Egg acenaria para a possibilidade, a necessidade, de algo a mais que o materialismo nunca poderá suprir — um anseio nostálgico por algum tipo de ideal que se recuse a ceder ao domínio acidental dos assuntos do dia? Sob essa perspectiva, ao retrocedermos o suficiente na história americana, então arquetipicamente Benjamin Franklin seria o gênio propulsor de East Egg, enquanto Jonathan Edwardsb seria o espírito guardião de West Egg. Essa é uma compreensível e justificável leitura da notável “dessemelhança” dos dois tipos mais interessantes chocados pela América — o próprio Nick fala do “estranho e um tanto sinistro contraste” entre os dois Ovos. Porém, segundo seus próprios termos, essa é a perspectiva “dos que não voam”. Vistos de uma altura suficiente, é sua “semelhança física” que vira “fonte infinita de assombro”. Este romance de fato trata de dessemelhanças e semelhanças, e não há como ignorar as diferentes aspirações e destinos dos protagonistas sem asas. Contudo, perto do final, Nick resume: “Hoje percebo que, afinal, esta é uma história do Oeste — Tom, Gatsby, Daisy, Jordan e eu éramos todos do Oeste, e talvez tivéssemos uma deficiência em comum que nos tornava sutilmente inadaptáveis para a vida no Leste”. Haveria um ovo Buchanan e outro ovo Gatsby? Este último, um aborto, e o primeiro, um tesouro? Ou será que, levando em conta as mutações e variações, o celeiro produzia uma única espécie de animal? Depende, é claro, da altura em que você voe e da distância de que você observa — o que aponta para uma questão essencial levantada pelo livro: o que seria uma visão “distorcida”? Que mistura de proximidade e distância permitiria uma percepção melhor e mais apropriada? Como Nick deveria enxergar o que viu?
No conto “Winter dreams” [Sonhos de inverno], escrito por Fitzgerald em 1922, Dexter Green é filho do dono de uma mercearia em Minnesota, um rapaz ligeiro e alerta do Meio-Oeste que é “guiado de forma inconsciente pelos seus sonhos de inverno”. Os invernos são caracteristicamente “deploráveis”; os sonhos, em contrapartida, se voltam para alusões de “grandiosidade”.
Porém, ainda que seus sonhos de inverno estejam de início restritos a reflexões sobre os ricos, não vá pensar que o rapaz é apenas esnobe. Ele não quer associar-se aos objetos e pessoas deslumbrantes — ele quer as coisas deslumbrantes em si. Às vezes, procurava alcançar o melhor sem saber por quê — outras vezes, deparava-se com as misteriosas negações e proibições às quais a vida se entrega […]. Ele ganhou muito dinheiro. Era verdadeiramente maravilhoso.
Dexter Green é um Gatsby embrionário, e podemos ressaltar a curiosa distinção feita pelo narrador — “não quer associar-se aos objetos e pessoas deslumbrantes, [mas] ele quer as coisas deslumbrantes em si”: não a associação, mas o controle. No entanto, como seria possuir uma coisa ou uma pessoa deslumbrante? Poderia alguma vez essa tentativa de superar a associação, buscando a apropriação, não se deparar com “negações e proibições”? Essas são questões implícitas que irão permear o romance posterior.
Assim como muitos ambiciosos filhos de imigrantes, Dexter não podia se dar ao luxo de ser natural e espontâneo, pois isso poderia trair algo de sua origem “camponesa”. Ele se constrói cuidadosamente, tal qual seu próprio guarda-roupa. “Ele reconhecia o valor de tal maneirismo e o adotara.” Isso serve para proteger o eu do mundo lá fora, por assim dizer.
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