Seria Gatsby romântico ou bandido? Bandido e romântico? Quais as implicações para nós, americanos, de seus planos grandiosos e da “poeira imunda” que inevitavelmente “flutuava na superfície de seus sonhos” e de seu desafortunado despertar? Nick investiu muito — muito mesmo — em Gatsby e em sua própria tentativa escrita de recuperá-lo, ou melhor, celebrá-lo de forma elegíaca. “É uma gente ordinária. […] Você vale muito mais do que todos eles juntos.” De fato são ordinários, assim como Nick também o é — ou pelo menos é isso que nos transmite. Sem dúvida, a América pode produzir algo melhor do que os Buchanan e mais esplêndido do que os Carraway. Porém…
Não é possível avaliar até que ponto o livro é a versão de Nick. Em busca de certeza, ele reúne informações de diferentes fontes. Além da própria memória, há documentos, como o livro juvenil de Gatsby, Hopalong Cassidy, com a inscrição frankliniana “agenda” na guarda, e a lista infinitamente sugestiva do próprio Nick com os convidados de Gatsby no verão de 1922, que hoje está “esfarelando nas dobras”, sugerindo talvez a inevitável desintegração de outros repositórios de tempo — incluindo a memória do narrador. Então há o comprido relato oral dos primórdios do relacionamento entre Gatsby e Daisy, que lhe fora fornecido por Jordan Baker, e as informações sobre a vida passada de Gatsby, Dan Cody e os anos da guerra, dados pelo próprio Gatsby durante a funesta e desesperada vigília após o acidente fatal. Mas é Nick que transcreve esses relatos; não podemos saber o quanto ele reformulou e traduziu de suas fontes — transformando, embelezando, exagerando, reescrevendo. De acordo com as convenções da narrativa ficcional, quando um narrador põe o discurso de outro personagem entre aspas ou travessão, é que aquelas são as palavras exatas: ele tem a obrigação de lembrar tudo à perfeição, o que é ligeiramente implausível. Pois bem, pelas minhas contas rudimentares, cerca de 4% do livro está nas palavras do próprio Gatsby, e é revelador saber que Fitzgerald reduziu consideravelmente o montante de discurso direto dado a Gatsby no rascunho do romance. Por exemplo: “‘Jay Gatsby!’, ele gritou de súbito numa voz retumbante. ‘Lá vai o grande Jay Gatsby. É isso que as pessoas vão dizer — espere só para ver.’”. Com tais rompantes, Gatsby entregaria a si mesmo, revelando-se de forma demasiado crua e inequívoca. Por meio da subtração sistemática, Fitzgerald torna seu herói muito mais misterioso, menos óbvio, uma figura essencialmente mais elusiva. Em lugar disso, temos mais espaço para Nick teorizar, especular e imaginar — e talvez suprimir, remodelar, fantasiar.
Seu relato é sempre marcado por palavras e expressões como: “Eu suponho”, “me parece”, “eu acho”; “possivelmente”, “provavelmente”, “talvez”; “ouvi dizer”, “ele parecia dizer”, “deve ter havido”, “sou da opinião de que”, “sempre tive a impressão”. Em mais de sessenta ocasiões, ele usa as expressões “como se” e “feito” para introduzir suas próprias analogias transformadoras e metáforas metamórficas ao relato. “Talvez lhe tenha ocorrido”, ou talvez não. Nunca poderemos saber. O que sabemos é o que ocorre a Nick. Por mais que possamos nos afeiçoar ou reagir ao personagem de “Gatsby” — “o homem que dá nome a este livro”, como, é curioso notar, Nick faz questão de explicar —, devemos sempre lembrar que estamos reagindo ao retrato que Nick faz dele. Desde a primeira impressão de Gatsby (“um homem aparentemente da minha idade”) até os dias subsequentes à sua morte, quando Nick é confundido com Gatsby ao telefone e passa a nutrir um “sentimento de desafio, de desprezo solidário a Gatsby contra todos eles”, ficamos cientes da forte inclinação do narrador em se identificar com Gatsby, bem como de torná-lo herói. Por isso é tão importante para Nick ser capaz de sentir que o relato de Gatsby sobre sua vida é “a mais pura verdade”, e por isso fica feliz de ter “um daqueles instantes de restauração absoluta da fé em Gatsby que eu já experimentara antes”. Fora do horário comercial, quando está basicamente fazendo circular o dinheiro gerado pelo próprio dinheiro, Nick investe tudo em Gatsby — no seu Gatsby.
Nick se revela, ou pelo menos se descreve, como a perfeita antítese de Gatsby, como um dos “jovens homens tristes” de Fitzgerald.c (Há certa semelhança com o emocionalmente tímido Lockwood construindo sua narrativa sobre o apaixonado Heathcliff em O morro dos ventos uivantes.)
Eu conhecia os outros funcionários e corretores pelo primeiro nome e almoçava com eles em restaurantes escuros e lotados, onde pedíamos pequenas salsichas de porco, purê de batatas e café. Cheguei inclusive a ter um breve caso com uma garota de Jersey City que trabalhava na contabilidade, mas seu irmão começou a lançar olhares zangados em minha direção, e por isso deixei o relacionamento acabar naturalmente quando ela saiu de férias, em julho.
Quando se trata de envolvimento emocional ou sexual, tudo aquilo que Nick não deixa morrer naturalmente é afastado por ele próprio — como fez com um “noivado” anterior e também com Jordan Baker. Ele é um voyeur exclusivista (às vezes de forma singular: ele fala da “sensação de querer olhar diretamente para todo mundo, e ainda assim evitar todos os olhares”. Nisso ele é como a sexualmente ansiosa Isabel Archer em Retrato de uma senhora, de Henry James, que deseja “ver, mas não sentir”). No campo do erotismo, a vida imaginada é mais segura do que a vida real.
Gostava de subir a Quinta Avenida, de eleger uma entre tantas mulheres românticas na multidão e imaginar que, em alguns instantes, eu entraria em sua vida, sem que ninguém ficasse sabendo ou pudesse desaprovar. Às vezes, em minha imaginação, eu a seguia até seu apartamento na esquina de uma rua escondida, e ela virava para trás e sorria, prestes a desaparecer por uma porta na cálida escuridão.
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