Mas esse gesto de “apagar” tem uma dimensão bem mais sugestiva. Embora seja um exagero dizer que a ocupação atual de Gatsby (deixemos seus sonhos de lado por um instante) seja em si uma “obscenidade”, é certo que sua ocupação, riqueza e identidade estão claramente fundamentadas numa série de atividades mais ou menos sujas e criminosas. Há indícios de que Gatsby tentara aludir a isso mais de uma vez, forçando Nick a confrontar e reconhecer o fato. Ele sempre se recusa: prefere “apagar” a parte potencialmente “suja” da história, seja por omissão, negação, substituição, reinterpretação ou transformação, embora, é claro — e isso é parte da genialidade do livro —, seja possível captar vislumbres e alusões frequentes ao que ele está tentando esconder. (Por exemplo, Nick descreve o início do namoro de Gatsby e Daisy como romântico e poético, e só depois descobre que Gatsby a tomou “de modo voraz e inescrupuloso”.) Para os propósitos deste livro, Nick prefere se concentrar na figura do sonhador esperançoso e desgraçado, vestido num terno cor-de-rosa. A certa altura, ele diz que vai relatar o que descobriu posteriormente sobre a juventude de Gatsby — Dan Cody e coisas assim —, “para esclarecer essa série de mal-entendidos”, ou seja, os boatos delirantes e tolos que circulavam a respeito do enigmático Gatsby. Ele sem dúvida afastou tais boatos, mas é possível que tenha afastado — e apagado — muito mais do que isso. Podemos até tomar o que ele diz de Dan Cody como uma descrição fiel. Mas e quanto a este relato resumido da adolescência de Gatsby?
Mas seu coração vivia em uma turbulência constante. As ideias mais grotescas e fantásticas o perseguiam à noite, antes de dormir. Um universo de ostentação inefável se formava em sua mente enquanto os ponteiros do relógio avançavam no lavatório e a lua banhava de luz úmida suas roupas bagunçadas no chão. Todas as noites ele acrescentava algo à estrutura de suas fantasias […]. As ilusões lhe propiciaram um escape para a imaginação; eram uma alusão satisfatória à irrealidade da realidade, uma promessa de que a rocha do mundo estava assentada numa asa de fada.
De quem estamos falando? De Gatsby ou de Nick? Ou devemos agora dizer Nick Gatsby? O milionário tenta utilizar a luz da lua (sonho, imaginação) para derrotar o tique-taque do relógio (história, irreversibilidade), mas Nick também valoriza a luz da lua, e tenta evitar que seja conspurcada e contaminada pelas obscenidades indeléveis do real. Gatsby fornece a Nick um escape para a imaginação deste — incorporando os devaneios de “ostentação” mencionados por Nick — e parece oferecer-lhe uma alusão satisfatória, ou quase, à “irrealidade da realidade”. A “rocha do mundo” é dura e esmaga as coisas frágeis e vulneráveis, assim como os punhos e as palavras de Tom Buchanan; Nick prefere imaginar que Gatsby a relaciona com uma asa de fada — como se algo pudesse ser assentado em asas de fada, ou fundado no diáfano, por assim dizer. A questão é que é praticamente impossível saber quando Nick está acrescentando ou subtraindo, quando está ampliando ou apagando, quando está apenas fantasiando ou, mais imaginativamente, omitindo por estar solidário. Num trecho, ele afirma que, talvez devido ao seu notório hábito de “abster-se de todos os julgamentos” (que são escancarados neste livro), ele é depositário de inúmeras “revelações íntimas dos jovens”; além disso, notou que os termos que eles usam para expressá-las “costumam ser derivativos e deturpados por supressões evidentes”. Portanto, somos prematuramente avisados da possibilidade de que suas próprias “revelações íntimas” — talvez todas as revelações desse tipo — também apresentem essas características inevitáveis. Nick pode ser uma das poucas pessoas honestas deste mundo, mas Jordan Baker não está errada ao dizer, a título de despedida, que ele é também um “mau motorista”.
Deixe-me explicar de outra forma. Quando Nick entra pela primeira vez na oficina de Wilson, no vale das cinzas, sua reação é a seguinte: “O interior da oficina era miserável e deserto; o único carro visível era a carcaça poeirenta de um Ford encolhida num canto escuro. Ocorreu-me então que aquela sombra de oficina só podia ser uma fachada e que havia quartos românticos e suntuosos escondidos no andar de cima”. Nick não suporta a ideia de confrontar uma realidade que é puramente miserável e deserta, empoeirada e estragada. Deve haver algo além disso, uma dimensão oculta de suntuosidade e romantismo com relação à qual a pobreza e a degradação das aparências sejam apenas uma “fachada” ilusória, uma máscara enganadora. Mas a devastação nada transcendental da oficina no vale das cinzas é bastante real e não oculta nada além de uma sórdida traição conjugal. No vale das cinzas, não há nada além do que se vê. Os fantasmagóricos “quartos românticos e suntuosos” são frutos da arquitetura generosa da imaginação dele, ação simultânea de sua privação e desejo. Portanto, em lugar de repressão e falsificação, devemos mais acertadamente falar em apagamento e suplementação fornecidos por sua imaginação e, é claro, sua escrita.
Gostaria de me concentrar em três exemplos de “suplementação” evidentes em alguns dos principais trechos do livro. Sua maior sacada durante o processo de revisão misteriosamente certeiro das provas do romance, que contou com inspiradas adições e subtrações, foi a inclusão do famoso comentário de Gatsby: “A voz dela é cheia de dinheiro”. A observação de Nick não só é notável como notavelmente reveladora: “Era isso mesmo. Eu nunca tinha me dado conta.
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