O Guarani

ALENCAR: SURPREENDENTE
NÃO POR SER EXÓTICO.
“Um índio descerá
de uma estrela colorida, brilhante”
(Caetano Veloso)
José Martiniano de Alencar nasce no Ceará, em 1829, no final do Primeiro Reinado, de lá saindo para a Corte aos dez anos. No Rio de Janeiro, conclui seus estudos secundários, transferindo-se para São Paulo, onde cursa a Faculdade de Direito.
De volta ao Rio, entra em contato com a intelectualidade literária – nomes como Machado, Manuel Antônio de Almeida – e estreia como escritor no Correio Mercantil aos 25 anos. Imaginoso, empenhado na construção de uma literatura brasileira diferente da europeia, provoca a famosa polêmica sobre a Confederação dos Tamoios, poema épico escrito por Gonçalves de Magalhães. Discordando do poeta, quando este afirma ser o poema a grande epopeia brasileira, Alencar, em 1857, publica, em resposta, O Guarani, verdadeira narrativa épica do Segundo Império.
Famoso devido ao sucesso desse romance, passa a dedicar-se mais intensamente ao gênero literário, bem como à política. Elege-se, seguidamente, deputado pelo Ceará, chegando a Ministro da Justiça. Homem de ideias conservadoras, sobretudo face ao problema escravista, termina por afastar-se da vida pública ao ser preterido por D. Pedro II na indicação para o Senado.
José de Alencar é considerado o consolidador da prosa nacional, sendo o nosso primeiro grande romancista. Sua obra, composta de vinte e um romances, é o retrato de sua postura ideológica: grande proprietário rural, conservador, monarquista e escravocrata, revela suas posições políticas por meio de um exagerado nacionalismo. No prefácio a Sonhos d’Ouro, afirma sua pretensão de fazer um grande painel literário do Brasil, exibindo-o por inteiro, de Norte a Sul, do sertão ao litoral, do passado ao presente, do urbano ao rural. Teoriza, inclusive, sobre a tentativa do estabelecimento de uma língua brasileira em seus escritos.
Quando, em 1856, Alencar publica seu primeiro romance, Cinco Minutos, já havia um público leitor brasileiro ávido por ficção. No entanto, tais obras eram, basicamente, traduzidas do francês, não constituindo, pois, um retrato de nosso povo. O escritor percebe, portanto, que poderia fazer um grande serviço à então incipiente cultura nacional ao publicar histórias que refletissem a psicologia e a sociedade pátrias, que captassem a nossa sensibilidade artística, que moldassem a nossa percepção do real por meio de informações sobre a natureza, a história, a sociedade, a cultura e os mitos do Brasil.
Por conseguinte, o enredo das obras alencarianas é muito eficiente nesse sentido. Quase didáticas, também buscam o entretenimento do leitor. E aí reside o valor de sua ficção: nela há tudo, desde o exercício etnográfico até a análise social e psicológica, entremeados de peripécias, heróis, heroínas e vilões. Sem perder a visão de conjunto de sua narrativa, José de Alencar afirma a supremacia da ficção sobre a chatice de detalhes históricos e geográficos. Ao apresentar personagens e situações quase inverossímeis, permite ao leitor um momento de puro lazer, para devolvê-lo pacificado a um final em que tudo se explica convenientemente por meio da imaginação.
A carreira literária pontuada de polêmicas não impede uma produção fértil. Nela, destacam-se Cinco Minutos, O Guarani, Lucíola, As Minas de Prata, Diva, Iracema, O Gaúcho, A Pata da Gazela, O Tronco do Ipê, Sonhos d’Ouro, A Guerra dos Mascates, Ubirajara, Senhora, O Sertanejo, Encarnação – seu último romance, visto que a tuberculose o vitima aos 48 anos.
Em suas obras classificadas como indianistas – O Guarani, Iracema e Ubirajara –, o escritor cearense recria o mito do bom selvagem de Rousseau em nosso indígena. Defensor da associação entre o nativo e o europeu colonizador, observa, nesse casamento, inúmeras vantagens para ambos os povos: enquanto aquele oferece a natureza virgem, este lhe dá, em troca a cultura. O produto dessa amálgama seria o Brasil independente.
Ainda nos livros cuja temática é o índio, Alencar lança mão do amor espiritualizado, motivador de toda a trama. A pureza de sentimentos supera todos os obstáculos gerados por diferenças sociais. A natureza brasileira é o cenário do romance indianista. A paisagem, pintada pela poesia, é um recanto de salvação.
O herói alencariano – o índio mitificado – é esteio da nobreza originária do sangue, da natureza. Desde o tipo físico até o caráter, tudo nele remete à força selvagem, indômita e independente que brota da terra – própria matriz dos valores românticos. Tais traços evidenciam-se de maneira notável em O Guarani.
Organizado em quatro partes – “Os Aventureiros”, “Peri”, “Os Aimorés” e “A Catástrofe” – o primeiro romance indianista de José de Alencar passa-se no século XVII, às margens do rio Paraíba, e tem por protagonista o heroico, belo e nobre Peri – “Enquanto falava, um assomo de orgulho selvagem da força e da coragem lhe brilhava nos olhos negros, e dava certa nobreza ao seu gesto. Embora ignorante, filho das florestas, era um rei; tinha a realeza da força.” Da soma do índio nobre com o branco cavalheiro – resquício medieval – surge “o povo heroico”, “a pátria amada”, “impávido colosso.”
As primeiras cenas da obra descrevem a fortaleza de D. Antônio Mariz “a qual fazia as vezes de um castelo feudal na Idade Média”, às margens do Paquequer. Nesse cenário, encontram-se D. Lauriana, Cecília, Isabel, D. Diogo, o escudeiro Aires Gomes (à semelhança dos personagens de Cervantes), D. Antônio, Peri, os Aventureiros chefiados pelo cavalheiro D.
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