cavalheiro; não vos parece claro, à vista do que me ouvistes, que adivinhei o vosso desejo de chegar o mais depressa possível?

– Quanto a isto, já vos confessei eu; não há pois grande mérito em adivinhar.

– Não vos parece claro também que observei haverdes feito esta expedição com a maior rapidez, de modo que em menos de vinte dias eis-nos ao cabo dela?

– Já vos disse que tive ordem, e creio que nada tendes a opor.

– Não, decerto; uma ordem é um dever, e um dever cumpre-se com satisfação, quando o coração nele se interessa.

– Sr. Loredano! disse o moço levando a mão ao punho da espada e colhendo as rédeas.

O italiano fez que não tinha visto o gesto de ameaça; continuou:

– Assim tudo se explica. Recebestes uma ordem; foi de D. Antônio de Mariz, sem dúvida?

– Não sei que nenhum outro tenha direito de dar-me, replicou o moço com arrogância.

– Naturalmente por virtude desta ordem, continuou o italiano cortesmente, partistes do Paquequer em uma segunda-feira, quando o dia designado era um domingo.

– Ah! também reparastes nisto? perguntou o moço mordendo os beiços de despeito.

– Reparo em tudo, sr. cavalheiro; assim, não deixei de observar, ainda, que sempre em virtude da ordem, fizestes tudo para chegar justamente antes do domingo.

– E não observastes mais nada? perguntou Álvaro com a voz trêmula e fazendo um esforço para conter-se.

– Não me escapou também uma pequena circunstância de que já vos falei.

– E qual é ela, se vos praz?

– Oh! não vale a pena repetir: é coisa de somenos.

– Dizei sempre, Sr. Loredano; nada é perdido entre dois homens que se entendem, replicou Álvaro com um olhar de ameaça.

– Já que o quereis, força é satisfazer-vos. Noto que a ordem de D. Antônio, e o italiano carregou nessa palavra, manda-vos estar no Paquequer um pouco antes de seis horas, a tempo de ouvir a prece.

– Tendes um dom admirável, Sr. Loredano: o que é de lamentar é que o empregueis em futilidades.

– Em que quereis que um homem gaste seu tempo neste sertão, senão a olhar para seus semelhantes, e ver o que eles fazem?

– Com efeito é uma boa distração.

– Excelente. Vede vós, tenho visto coisas que se passam diante dos outros, e que ninguém percebe, porque não se quer dar ao trabalho de olhar como eu, disse o italiano com o seu ar de simplicidade fingida.

– Contai-nos isto, há de ser curioso.

– Ao contrário, é o mais natural possível; um moço que apanha uma flor ou um homem que passeia de noite à luz das estrelas... Pode haver coisa mais simples?

Álvaro empalideceu desta vez.

– Sabeis uma coisa, Sr. Loredano?

– Saberei, cavalheiro, se me fizerdes a honra de dizer.

– Está me parecendo que a vossa habilidade de observador levou-vos muito longe, e que fazeis nem mais nem menos do que o ofício de espião.

O aventureiro ergueu a cabeça com um gesto altivo, levando a mão ao cabo de uma larga adaga que trazia à ilharga: no mesmo instante porém dominou este movimento e voltou à bonomia habitual.

– Quereis gracejar, sr. cavalheiro?...

– Enganais-vos, disse o moço picando o seu cavalo e encostando-se ao italiano, falo-vos seriamente; sois um infame espião! Mas juro, por Deus, que à primeira palavra que proferirdes, esmago-vos a cabeça como a uma cobra venenosa.

A fisionomia de Loredano não se alterou; conservou a mesma impassibilidade; apenas o seu ar de indiferença e sarcasmo desapareceu sob a expressão de energia e maldade que lhe acentuou os traços vigorosos.

Fitando um olhar duro no cavalheiro, respondeu:

– Visto que tomais a coisa neste tom, Sr. Álvaro de Sá, cumpre que vos diga que não é a vós que cabe ameaçar; entre nós dois, deveis saber qual é o que tem a temer!...

– Esqueceis a quem falais? disse o moço com altivez.

– Não, senhor, lembro tudo; lembro que sois meu superior, e também, acrescentou com voz surda, que tenho o vosso segredo.

E, parando o animal, o aventureiro deixou Álvaro seguir só na frente, e misturou-se com os seus companheiros.

A pequena cavalgata continuou a marcha através da picada, e aproximou-se de uma dessas clareiras das matas virgens, que se assemelham a grandes zimbórios de verdura.

Neste momento um rugido espantoso fez estremecer a floresta, e encheu a solidão com os ecos estridentes.

Os caminheiros empalideceram e olharam um para o outro; os cavaleiros engatilharam os arcabuzes e seguiram lentamente, lançando um olhar cauteloso pelos ramos das árvores.

IV – CAÇADA

Quando a cavalgata chegou à margem da clareira, aí se passava uma cena curiosa.

Em pé, no meio do espaço que formava a grande abóbada de árvores, encostado a um velho tronco decepado pelo raio, via-se um índio[9] na flor da idade.

Uma simples túnica de algodão, a que os indígenas chamavam aimará, apertada à cintura por uma faixa de penas escarlates, caía-lhe dos ombros até ao meio da perna, e desenhava o talhe delgado e esbelto como um junco selvagem.

Sobre a alvura diáfana do algodão, a sua pele, cor do cobre, brilhava com reflexos dourados; os cabelos pretos cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes com os cantos exteriores erguidos para a fronte; a pupila negra, móbil, cintilante; a boca forte, mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos, dava ao rosto pouco oval a beleza inculta da graça, da força e da inteligência.

Tinha a cabeça cingida por uma fita de couro, à qual se prendiam do lado esquerdo duas plumas matizadas, que descrevendo uma longa espiral vinham roçar com as pontas negras o pescoço flexível.

Era de alta estatura; tinha as mãos delicadas; a perna ágil e nervosa, ornada com uma axorca de frutos amarelos, apoiava-se sobre um pé pequeno, mas firme no andar e veloz na corrida. Segurava o arco e as flechas com a mão direita caída, e com a esquerda mantinha verticalmente diante de si um longo forcado de pau enegrecido pelo fogo.

Perto dele estava atirada ao chão uma clavina tauxiada, uma pequena bolsa de couro que devia conter munições, e uma rica faca flamenga, cujo uso foi depois proibido em Portugal e no Brasil.

Nesse instante erguia a cabeça e fitava os olhos numa sebe de folhas que se elevava a vinte passos de distância, e se agitava imperceptivelmente.

Ali, por entre a folhagem, distinguiam-se as ondulações felinas de um dorso negro, brilhante, marchetado de pardo; às vezes viam-se brilhar na sombra dois raios vítreos e pálidos, que semelhavam os reflexos de alguma cristalização de rocha, ferida pela luz do sol.

Era uma onça enorme; de garras apoiadas sobre um grosso ramo de árvore, e pés suspensos no galho superior, encolhia o corpo, preparando o salto gigantesco.

Batia os flancos com a larga cauda, e movia a cabeça monstruosa, como procurando uma aberta entre a folhagem para arremessar o pulo; uma espécie de riso sardônico e feroz contraía-lhe as negras mandíbulas e mostrava a linha de dentes amarelos; as ventas dilatadas aspiravam fortemente e pareciam deleitar-se já com o odor do sangue da vítima.

O índio, sorrindo e indolentemente encostado ao tronco seco, não perdia um só desses movimentos, e esperava o inimigo com a calma e serenidade do homem que contempla uma cena agradável: apenas a fixidade do olhar revelava um pensamento de defesa.

Assim, durante um curto instante, a fera e o selvagem mediram-se mutuamente, com os olhos nos olhos um do outro; depois o tigre agachou-se, e ia formar o salto, quando a cavalgata apareceu na entrada da clareira.

Então o animal, lançando ao redor um olhar injetado de sangue, eriçou o pelo, e ficou imóvel no mesmo lugar, hesitando se devia arriscar o ataque.

O índio, que ao movimento da onça acurvara ligeiramente os joelhos e apertava o forcado[10], endireitou-se de novo; sem deixar a sua posição, nem tirar os olhos do animal, viu a banda que parara à sua direita.

Estendeu o braço e fez com a mão um gesto de rei, que rei das florestas ele era, intimando aos cavaleiros que continuassem a sua marcha.

Como, porém, o italiano, com o arcabuz em face, procurasse fazer a pontaria entre as folhas, o índio bateu com o pé no chão em sinal de impaciência, e exclamou apontando para o tigre, e levando a mão ao peito:

– É meu!... meu só!

Estas palavras foram ditas em português, com uma pronúncia doce e sonora, mas em tom de energia e resolução.

O italiano riu.

– Por Deus! Eis um direito original! Não quereis que se ofenda a vossa amiga?... Está bem, dom cacique, continuou, lançando o arcabuz a tiracolo; ela vo-lo agradecerá.

Em resposta a esta ameaça, o índio empurrou desdenhosamente com a ponta do pé a clavina que estava atirada ao chão, como para exprimir que, se ele o quisesse, já teria abatido o tigre de um tiro. Os cavaleiros compreenderam o gesto, porque, além da precaução necessária para o caso de algum ataque direto, não fizeram a menor demonstração ofensiva.

Tudo isso se passou rapidamente, em um segundo, sem que o índio deixasse um só instante com os olhos o inimigo.

A um sinal de Álvaro de Sá, os cavaleiros prosseguiram a sua marcha, e entranharam-se de novo na floresta.

O tigre, que observava os cavaleiros, imóvel, com o pelo eriçado, não ousara investir nem retirar-se, temendo expor-se aos tiros dos arcabuzes; mas, apenas viu a tropa distanciar-se e sumir-se no fundo da mata, soltou um novo rugido de alegria e contentamento.

Ouviu-se um rumor de galhos que se espedaçavam como se uma árvore houvesse tombado na floresta, e o vulto negro da fera passou no ar; de um pulo tinha ganho outro tronco e metido entre ela e o seu adversário uma distância de trinta palmos.

O selvagem compreendeu imediatamente a razão disto: a onça, com os seus instintos carniceiros e a sede voraz de sangue, tinha visto os cavalos e desdenhava o homem, fraca presa para saciá-la.

Com a mesma rapidez com que formulou este pensamento, tomou na cinta uma flecha pequena e delgada como espinho de ouriço, e esticou a corda do grande arco, que excedia de um terço a sua altura.

Ouviu-se um forte sibilo, que foi acompanhado por um bramido da fera; a pequena seta despedida pelo índio se cravara na orelha, e uma segunda, açoitando o ar, ia ferir-lhe a mandíbula inferior.

O tigre tinha-se voltado ameaçador e terrível, aguçando os dentes uns nos outros, rugindo de fúria e vingança: de dois saltos aproximou-se novamente.

Era uma luta de morte a que ia se travar; o índio o sabia, e esperou tranquilamente, como da primeira vez; a inquietação que sentira um momento de que a presa lhe escapasse, desaparecera: estava satisfeito.

Assim, estes dois selvagens das matas do Brasil, cada um com as suas armas, cada um com a consciência de sua força e de sua coragem, consideravam-se mutuamente como vítimas que iam ser imoladas.

O tigre desta vez não se demorou; apenas se achou a coisa de quinze passos do inimigo, retraiu-se com uma força de elasticidade extraordinária e atirou-se como um estilhaço de rocha, cortada pelo raio.

Foi cair sobre o índio, apoiado nas largas patas detrás, com o corpo direito, as garras estendidas para degolar a sua vítima, e os dentes prontos a cortar-lhe a jugular.

A velocidade deste salto monstruoso foi tal que, no mesmo instante em que se vira brilhar entre as folhas os reflexos negros de sua pele azevichada, já a fera tocava o chão com as patas.

Mas tinha em frente um inimigo digno dela, pela força e agilidade.

Como a princípio, o índio havia dobrado um pouco os joelhos, e segurava na esquerda a longa forquilha, sua única defesa; os olhos sempre fixos magnetizavam o animal. No momento em que o tigre se lançara, curvou-se ainda mais; e fugindo com o corpo apresentou o gancho. A fera, caindo com a força do peso e a ligeireza do pulo, sentiu o forcado cerrar-lhe o colo, e vacilou.

Então, o selvagem distendeu-se com a flexibilidade da cascavel ao lançar o bote; fincando os pés e as costas no tronco, arremessou-se e foi cair sobre o ventre da onça, que, subjugada, prostrada de costas, com a cabeça presa ao chão pelo gancho, debatia-se contra o seu vencedor, procurando debalde alcançá-lo com as garras.

Esta luta durou minutos; o índio, com os pés apoiados fortemente nas pernas da onça, e o corpo inclinado sobre a forquilha, mantinha assim imóvel a fera, que há pouco corria a mata não encontrando obstáculos à sua passagem.

Quando o animal, quase asfixiado pela estrangulação, já não fazia senão uma fraca resistência, o selvagem, segurando sempre a forquilha, meteu a mão debaixo da túnica e tirou uma corda de ticum[11] que tinha enrolada à cintura em muitas voltas.

Nas pontas desta corda havia dois laços que ele abriu com os dentes e passou nas patas dianteiras ligando-as fortemente uma à outra; depois fez o mesmo às pernas, e acabou por amarrar as duas mandíbulas, de modo que a onça não pudesse abrir a boca.

Feito isto, correu a um pequeno arroio que passava perto; e enchendo de água uma folha de cajueiro-bravo, que tornou cova, veio borrifar a cabeça da fera. Pouco a pouco o animal ia tornando a si; e o seu vencedor aproveitava este tempo para reforçar os laços que o prendiam, e contra os quais toda a força e agilidade do tigre seriam impotentes.

Neste momento uma cutia tímida e arisca apareceu na lezíria da mata e, adiantando o focinho, escondeu-se arrepiando o seu pelo vermelho e afogueado.

O índio saltou sobre o arco, e abateu-a daí a alguns passos no meio da carreira; depois, apanhando o corpo do animal que ainda palpitava, arrancou a flecha, e veio deixar cair nos dentes da onça as gotas do sangue quente e fumegante.

Apenas o tigre moribundo sentiu o odor da carniça e o sabor do sangue que filtrando entre as presas caíra na boca, fez uma contorção violenta, e quis soltar um urro que apenas exalou-se num gemido surdo e abafado.

O índio sorria, vendo os esforços da fera para arrebentar as cordas que a atavam de maneira que não podia fazer um movimento, a não serem essas retorções do corpo, em que debalde se agitava. Por cautela tinha-lhe ligado até os dedos uns aos outros para privar-lhe que pudesse usar das unhas longas e retorcidas, que são a sua arma mais terrível.

Quando o índio satisfez o prazer de contemplar o seu cativo quebrou na mata dois galhos secos de biribá[12] e roçando rapidamente um contra o outro, tirou fogo pelo atrito e tratou de preparar a sua caça para jantar.

Em pouco tempo tinha acabado a selvagem refeição, que ele acompanhou com alguns favos de mel de uma pequena abelha que fabrica as suas colmeias no chão. Foi ao regato, bebeu alguns goles de água, lavou as mãos, o rosto e os pés, e cuidou em pôr-se a caminho.

Passando pelas patas do tigre o seu longo arco que suspendeu ao ombro, e vergando ao peso do animal que se debatia em contorções, tomou a picada por onde tinha seguido a cavalgata.

Momentos depois, no lugar desta cena já deserto, entreabriu-se uma moita espessa, e surdiu um índio completamente nu, ornado apenas com uma trofa de penas amarelas.

Lançou ao redor um olhar espantado, examinou cautelosamente o fogo que ardia ainda e os restos da caça; deitou-se encostando o ouvido em terra, e assim ficou algum tempo.

Depois se ergueu e entranhou de novo pela floresta, na mesma direção que o outro tomara pouco tempo antes.

V – LOURA E MORENA

Caía a tarde.

No pequeno jardim da casa do Paquequer, uma linda moça se embalançava indolentemente numa rede de palha presa aos ramos de uma acácia silvestre, que estremecendo deixava cair algumas de suas flores miúdas e perfumadas.

Os grandes olhos azuis, meio cerrados, às vezes se abriam languidamente como para se embeberem de luz, e abaixavam de novo as pálpebras rosadas.

Os lábios vermelhos e úmidos pareciam uma flor da gardênia[13] dos nossos campos, orvalhada pelo sereno da noite; o hálito doce e ligeiro exalava-se formando um sorriso. Sua tez alva e pura como um froco de algodão tingia-se nas faces de uns longes cor-de-rosa, que iam, desmaiando, morrer no colo de linhas suaves e delicadas.

O seu trajo era do gosto o mais mimoso e o mais original que é possível conceber; mistura de luxo e de simplicidade.

Tinha sobre o vestido branco de cassa um ligeiro saiote de riço azul apanhado à cintura por um broche; uma espécie de arminho cor de pérola, feito com a penugem macia de certas aves, orlava o talho e as mangas, fazendo realçar a alvura de seus ombros e o harmonioso contorno de seu braço arqueado sobre o seio.

Os longos cabelos louros, enrolados negligentemente em ricas tranças, descobriam a fronte alva, e caíam em volta do pescoço presos por uma rendinha finíssima de fios de palha cor de ouro, feita com uma arte e perfeição admirável.

A mãozinha afilada brincava com um ramo de acácia que se curvava carregado de flores, e ao qual de vez em quando segurava-se para imprimir à rede uma doce oscilação.

Esta moça era Cecília.

O que passava nesse momento em seu espírito infantil é impossível descrever; o corpo, cedendo à languidez que produz uma tarde calmosa, deixava que a imaginação corresse livre.

Os sopros tépidos da brisa que vinham impregnados dos perfumes das madressilvas, e das açucenas agrestes, ainda excitavam mais esse enlevo e bafejavam talvez nessa alma inocente algum pensamento indefinido, algum desses mitos de um coração de moça aos dezoito anos.

Ela sonhava que uma das nuvens brancas que passavam pelo céu anilado, roçando a ponta dos rochedos, se abria de repente; e um homem vinha cair a seus pés tímido e suplicante.

Sonhava que corava; e um rubor vivo acendia o rosado de suas faces; mas a pouco e pouco esse casto enleio ia se desvanecendo, e acabava num gracioso sorriso que sua alma vinha pousar nos lábios.

Com o seio palpitante, toda trêmula e ao mesmo tempo contente e feliz, abria os olhos; mas voltava-os com desgosto, porque, em vez do lindo cavalheiro que ela sonhara, via a seus pés um selvagem.

Tinha então, sempre em sonho, um desses assomos de cólera de rainha ofendida, que fazia arquear as sobrancelhas louras e bater sobre a relva a ponta de um pezinho de menina.

Mas o escravo suplicante erguia os olhos tão magoados, tão cheios de preces mudas e de resignação, que ela sentia um quer que seja de inexprimível, e ficava triste, triste, até que fugia e ia chorar.

Vinha porém o seu lindo cavalheiro, enxugava-lhe as lágrimas, e ela sentia-se consolada, e sorria de novo; mas conservava sempre uma sombra de melancolia, que só a pouco e pouco o seu gênio alegre conseguia desvanecer.

Neste ponto do seu sonho, a portinha interior do jardim abriu-se, e outra moça, roçando apenas a grama com o seu passo ligeiro, aproximou-se da rede.

Era um tipo inteiramente diferente do de Cecília; era o tipo brasileiro em toda a sua graça e formosura, com o encantador contraste de languidez e malícia, de indolência e vivacidade.

Os olhos grandes e negros, o rosto moreno e rosado, cabelos pretos, lábios desdenhosos, sorriso provocador, davam a este rosto um poder de sedução irresistível.

Ela parou em face de Cecília meio deitada sobre a rede, e não pôde furtar-se à admiração que lhe inspirava essa beleza delicada, de contornos tão suaves; e uma sombra imperceptível, talvez de um despeito, passou pelo seu rosto, mas esvaeceu-se logo.

Sentou-se numa das bandas da rede, reclinando sobre a moça para beijá-la ou ver se estava dormindo.

Cecília, sentindo um estremecimento, abriu os olhos e fitou-os em sua prima.

– Preguiçosa!... disse Isabel sorrindo.

– É verdade! respondeu a moça, vendo as grandes sombras que projetavam as árvores; está quase noite.

– E desde o sol alto que dormes, não é assim? perguntou a outra gracejando.

– Não, não dormi nem um instante, mas não sei o que tenho hoje que me sinto triste.

– Triste! tu, Cecília? não creio; era mais fácil não cantarem as aves ao nascer do sol.

– Está bem! não queres acreditar!

– Mas vem cá! Por que razão hás de estar triste, tu que durante todo o ano só tens um sorriso, tu que és alegre e travessa como um passarinho?

– É para veres! Tudo cansa neste mundo.

– Ah! compreendo! estás enfastiada de viver aqui nestes ermos.

– Já me habituei tanto a ver estas árvores, este rio, estes montes, que quero-lhes como se me tivessem visto nascer.

– Então o que é que te faz triste?

– Não sei; falta-me alguma coisa.

– Não vejo o que possa ser. Sim!... já adivinho!

– Adivinhas o quê? perguntou Cecília admirada.

– Ora! o que te falta.

– Se eu mesma não sei! disse a moça sorrindo.

– Olha, respondeu Isabel; ali está a tua rola esperando que a chames, e o teu veadinho que te olha com os seus olhos doces; só falta o outro animal selvagem.

– Peri![14] exclamou Cecília rindo-se da ideia de sua prima.

– Ele mesmo! Só tens dois cativos para fazeres as tuas travessuras; e como não vês o mais feio, e o mais desengraçado, estás aborrecida.

– Mas agora me lembro, disse Cecília, tu já o viste hoje?

– Não; nem sei o que é feito dele.

– Saiu antes de ontem à tarde; não vá ter-lhe sucedido alguma desgraça! disse a moça estremecendo.

– Que desgraça queres tu que lhe possa suceder? Não anda ele todo dia batendo o mato, e correndo como uma fera bravia?

– Sim; mas nunca lhe sucedeu ficar tanto tempo fora, sem voltar à casa.

– O mais que pode acontecer é terem-lhe apertado as saudades da sua vida antiga e livre.

– Não! exclamou a moça com vivacidade; não é possível que nos abandonasse assim!

– Mas então que pensas que andará fazendo por esse sertão?

– É verdade!... disse a moça preocupada.

Cecília ficou um momento com a cabeça baixa, quase triste; nesta posição, a vista caiu sobre o veado, que fitava nela a sua pupila negra com toda a languidez e suavidade, que a natureza pusera em seus olhos.

A moça estendeu a mão e deu com a ponta dos dedos um estalinho, que fez o lindo animal saltar de alegria e vir pousar a cabeça no seu regaço.

– Tu não abandonarás tua senhora, não é? disse ela passando a mão sobre o seu pelo acetinado.

– Não faças caso, Cecília, replicou Isabel reparando na melancolia da moça; pedirás a meu tio para caçar-te outro que farás domesticar, e ficará mais manso do que o teu Peri.

– Prima, disse a moça com um ligeiro tom de repreensão, tratas muito injustamente esse pobre índio que não te fez mal algum.

– Ora, Cecília, como queres que se trate um selvagem que tem a pele escura e o sangue vermelho? Tua mãe não diz que um índio é um animal como um cavalo ou um cão?

Estas últimas palavras foram ditas com uma ironia amarga, que a filha de Antônio de Mariz compreendeu perfeitamente.

– Isabel!... exclamou ela ressentida.

– Sei que tu não pensas assim, Cecília; e que o teu bom coração não olha a cor do rosto para conhecer a alma. Mas os outros?...