Cuidas que não percebo o desdém com que me tratam?
– Já te disse por vezes que é uma desconfiança tua; todos te querem, e te respeitam como devem.
Isabel abanou tristemente a cabeça.
– Vai-te bem o consolar-me; mas tu mesma tens visto se eu tenho razão.
– Ora, um momento de zanga de minha mãe...
– É um momento bem longo, Cecília! respondeu a moça com um sorriso amargo.
– Mas escuta, disse Cecília, passando o braço pela cintura de sua prima e chamando-a a si, tu bem sabes que minha mãe é uma senhora muito severa mesmo para comigo.
– Não te canses, prima; isto só serve para provar-me ainda mais o que já te confessei: nesta casa só tu me amas, os mais me desprezam.
– Pois bem, replicou Cecília, eu te amarei por todos; não te pedi já que me tratasses como irmã?
– Sim! e isto me causou um prazer, que tu não imaginas. Se eu fosse tua irmã!...
– E por que não hás de sê-lo? Quero que o sejas!
– Para ti, que para ele...
Este ele foi murmurado dentro d’alma.
– Mas olha que exijo uma coisa.
– O que é? perguntou Isabel.
– É que eu serei a irmã mais velha.
– Apesar de seres mais moça?...
– Não importa! Como irmã mais velha, tu me deves obedecer?
– Decerto, respondeu a prima sem poder deixar de sorrir.
– Pois bem! exclamou Cecília beijando-a na face, não te quero ver triste, ouviste? Senão fico zangada.
– E tu não estavas triste há pouco?
– Oh! já passou! disse a moça saltando ligeiramente da rede.
Com efeito, aquela doce languidez com que se embalançava há pouco, cismando em mil coisas, tinha desaparecido completamente: seu gênio de menina alegre e feiticeira havia cedido um momento ao enlevo, mas voltava de novo.
Era agora como sempre uma moça risonha e faceira, respirando toda a graciosa gentileza, misturada de inocência e estouvamento, que dão o ar livre e a vida passada no campo.
Erguendo-se, apinhou em botão de rosa os lábios vermelhos e imitou com uma graça encantadora os arrulhos doces da juriti; imediatamente a rola saltou dos galhos da acácia e veio aninhar-se no seu seio, estremecendo de prazer ao contato da mãozinha que alisava a sua penugem macia.
– Vamos dormir, disse ela à rola com a garridice com que as mães falam aos filhinhos recém-nascidos: a rolinha está com sono, não é?
E, deixando sua prima um momento só no jardim, foi agasalhar os seus dois companheiros de solidão, com tanto carinho e solicitude que bem revelava a riqueza de sentimento que havia no fundo desse coração, envolta pela graça infantil de seu espírito.
Nesta ocasião ouviu-se um tropel de animais perto da casa; Isabel lançou os olhos sobre as margens do rio, e viu uma banda de cavaleiros que entravam a cerca.
Soltou um grito de surpresa, de alegria e susto ao mesmo tempo.
– Que é? perguntou Cecília correndo para sua prima.
– São eles que chegam.
– Eles quem?
– O Sr. Álvaro e os outros.
– Ah!... exclamou a moça corando.
– Não achas que voltaram muito depressa? perguntou Isabel sem reparar na perturbação de sua prima.
– Muito; quem sabe se houve alguma coisa!
– Dezenove dias apenas... disse Isabel maquinalmente.
– Contaste os dias?
– É fácil!, respondeu a moça corando por sua vez; depois de amanhã faz três semanas.
– Vamos a ver que lindas coisas eles nos trazem!
– Nos trazem? repetiu Isabel carregando sobre a palavra com um tom de melancolia.
– Nos trazem, sim; porque eu encomendei um fio de pérolas para ti. Devem ir-te bem as pérolas, com tuas faces cor de jambo! Sabes que eu tenho inveja do teu moreninho, prima?
– E eu daria a minha vida para ter a tua alvura, Cecília.
– Ai! o sol está quase a se pôr! Vamos.
E as duas moças tomaram pelo interior da casa, dirigindo-se ao lado da entrada.
VI – A VOLTA
Ao mesmo tempo que esta cena se passava no jardim, dois homens passeavam do outro lado da esplanada, na sombra que projetava o edifício.
Um deles, de alto porte, conhecia-se imediatamente que era um fidalgo pela altivez do gesto e pelo trajo de cavalheiro.
Vestia um gibão de veludo preto com alamares de seda cor de café no peito e nas aberturas das mangas; os calções do mesmo estofo, e também pretos, caíam sobre as botas longas de couro branco com esporas de ouro.
Uma simples preguilha de linho alvíssimo cercava o talho do seu gibão, e deixava a descoberto o pescoço, que sustentava com graça uma bela e nobre cabeça de velho.
De seu chapéu de feltro pardo sem pluma escapavam-se os anéis de cabelos brancos, que caíam sobre os ombros; através da longa barba alva como a espuma da cascata, brilhavam suas faces rosadas, sua boca ainda expressiva, e seus olhos pequenos mas vivos.
Este fidalgo era D. Antônio de Mariz que, apesar de seus sessenta anos, mostrava um vigor devido talvez à vida ativa; trazia ainda o porte direito, e tinha o passo firme e seguro como se estivesse na força da idade.
O outro velho, que caminhava a seu lado com o chapéu na mão, era Aires Gomes, seu escudeiro e antigo companheiro de sua vida aventureira; o fidalgo depositava a maior confiança na sua discrição e zelo.
A fisionomia deste homem tinha, quer pela sagacidade inquieta que era a sua expressão ordinária, quer pelos seus traços alongados, uma certa semelhança com o focinho da raposa, semelhança que era ainda mais aumentada pelo seu trajo bizarro. Trazia sobre o gibão de belbutina cor de pinhão uma espécie de véstia do pelo daquele animal, do qual eram também as botas compridas, que lhe serviam quase de calções.
– Em que o negues, Aires Gomes, dizia o fidalgo ao seu escudeiro, medindo a passos lentos o terreno; estou certo que és do meu parecer.
– Não digo de todo que não, sr. cavalheiro; confesso que D. Diogo cometeu uma imprudência matando essa índia.
– Dize uma barbaria, uma loucura!... Não penses que com ser meu filho, o desculpo!
– Julgais com demasiada severidade.
– E o devo, porque um fidalgo que mata uma criatura fraca e inofensiva comete uma ação baixa e indigna. Durante trinta anos que me acompanhas, sabes como trato os meus inimigos; pois bem, a minha espada, que tem abatido tantos homens na guerra, cair-me-ia da mão se, num momento de desvario, a erguesse contra uma mulher.
– Mas é preciso ver que casta de mulher é esta, uma selvagem...
– Sei o que queres dizer; não partilho essas ideias que vogam entre os meus companheiros; para mim, os índios, quando nos atacam, são inimigos que devemos combater; quando nos respeitam, são vassalos de uma terra que conquistamos, mas são homens!
– Vosso filho não pensa assim, e bem sabeis que os princípios que lhe deu a Sra. D. Lauriana...
– Minha mulher!... replicou o fidalgo com algum azedume. Mas não é disto que discorríamos.
– Sim; faláveis dos receios que vos inspirava a imprudência de D. Diogo.
– E que pensas tu?
– Já vos disse que não vejo as coisas tão negras como vós, Sr. D. Antônio. Os índios vos respeitam, vos temem, e não se animarão a atacar-vos.
– Digo-te que te enganas, ou antes que procuras enganar-me.
– Não sou capaz de tal, sr. cavalheiro!
– Conheces tão bem como eu, Aires, o caráter desses selvagens; sabes que a sua paixão dominante é a vingança, e que por ela sacrificam tudo, a vida e a liberdade.
– Não desconheço isto, respondeu o escudeiro.
– Eles me temem, dizes tu; mas, desde o momento em que se julgarem ofendidos por mim, sofrerão tudo para vingar-se.
– Tendes mais experiência do que eu, sr. cavalheiro; mas queira Deus que vos enganeis.
Voltando-se na beira da esplanada para continuarem o seu passeio, D. Antônio de Mariz e o seu escudeiro viram um moço cavaleiro que atravessava pela frente da casa.
– Deixa-me, disse o fidalgo a Aires Gomes; e pensa no que te disse; em todo o caso que estejamos preparados para recebê-los.
– Se vierem! retrucou o teimoso escudeiro afastando-se.
D. Antônio dirigiu-se lentamente para o moço fidalgo que se havia sentado a alguns passos.
Vendo aproximar-se seu pai, D. Diogo de Mariz ergueu-se e descobrindo-se esperou-o numa atitude respeitosa.
– Sr. cavalheiro, disse o velho com um ar severo, infringistes ontem as ordens que vos dei.
– Senhor...
– Apesar das minhas recomendações expressas, ofendestes um desses selvagens e excitastes contra nós a sua vingança. Pusestes em risco a vida de vosso pai, de vossa mãe e de homens dedicados. Deveis estar satisfeito de vossa obra.
– Meu pai!...
– Cometestes uma ação má assassinando uma mulher, uma ação indigna do nome que vos dei; isto mostra que ainda não sabeis fazer uso da espada que trazeis à cinta.
– Não mereço esta injúria, senhor! Castigai-me, mas não rebaixeis vosso filho.
– Não é vosso pai que vos rebaixa, sr. cavalheiro, e sim a ação que praticastes. Não vos quero envergonhar, tirando essa arma que vos dei para combater pelo vosso rei; mas, como ainda não vos sabeis servir dela, proíbo-vos que a tireis da bainha ainda que seja para defender a vossa vida.
D.
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