Era o talento anglo-saxão para decisões parlamentares voltando a afirmar-se; houve uma longa troca de opiniões e nenhuma atitude foi tomada.

— Primeiro vamos considerar os fatos — insistia o sr. Sandy Wadgers. — Precisamos ter certeza de que estamos agindo corretamente se arrombarmos aquela porta. Uma porta sempre pode ser arrombada, mas depois que a gente arromba uma porta não pode desarrombá-la.

E nesse instante para surpresa de todos a porta no andar de cima abriu-se por iniciativa própria, e quando eles ergueram os olhos cheios de espanto viram descendo as escadas a figura tão familiar do estranho, envolto em seu capote, olhando para todos com aquelas lentes azuis e impenetráveis. Desceu muito empertigado, vagarosamente, sempre a encará-los; caminhou através do saguão e ali se deteve.

— Vejam aquilo! — disse ele. Todos os olhos seguiram na direção para onde seu dedo enluvado estava apontando, e viram uma garrafa de salsaparrilha pousada junto à porta que dava acesso ao porão.6 Então o homem passou para a sala, e de modo brusco e desatencioso, bateu a porta na cara de todos.

Nem uma palavra foi dita até que morreram os últimos ecos da batida da porta. Todos se entreolharam.

— Bom, isso explica as coisas — disse o sr. Wadgers, e deixou o dito pelo não dito.

— Eu iria até lá e perguntaria a ele sobre isso — disse Wadgers ao sr. Hall. — Eu exigiria dele uma explicação.

O esposo da proprietária precisou de algum tempo para se recompor. Bateu na porta, abriu-a e conseguiu ainda dizer:

— Perdão, mas eu...

— Vá para o inferno! — berrou o estranho com voz trovejante, e depois: — E feche a porta quando sair!

E isso encerrou o assunto.

Capítulo VII

O desmascaramento do estranho

Eram cerca de cinco e meia da manhã quando o estranho fechou-se na sala do Coach and Horses, e ali ele permaneceu até o meio-dia, com as cortinas cerradas, a porta trancada, sem que ninguém ousasse chegar perto, depois do modo como enxotou o sr. Hall.

Até aquela hora ele ficou sem se alimentar. Por três vezes tocou a campainha, a terceira delas de modo furioso e insistente, mas ninguém veio atendê-lo.

— Ele que vá para o diabo! — disse a sra. Hall.

Por fim começaram a chegar aos seus ouvidos os boatos sobre uma tentativa de roubo no vicariato, e todos começaram a somar dois mais dois. O sr. Hall, secundado por Wadgers, foi se encontrar com o sr. Shuckleforth, o magistrado, para pedir orientação. Ninguém ousava subir ao andar de cima, nem tinha ideia do que o estranho estaria fazendo. De vez em quando ouviam-se seus passos ruidosos, e por pelo menos duas vezes uma saraivada de imprecações, ruído de papel rasgado e de garrafas espatifando-se.

O grupo de pessoas assustadas mas curiosas não parava de aumentar. A sra. Huxter apareceu; alguns jovens trajando jaquetas pretas sob medida e gravatas da moda — pois era segunda-feira de Pentecostes — vieram contribuir para as informações desencontradas que ali circulavam. O jovem Archie Harker destacou-se por sua iniciativa de entrar pelo beco e espreitar através das venezianas cerradas. Não viu nada, mas voltou com o ar de quem tinha visto alguma coisa, e logo foi cercado por todos.

Era uma bela segunda-feira de Pentecostes, e, ao longo da estrada que cortava o vilarejo, enfileirava-se uma dúzia de barracas, uma tenda de tiro ao alvo, e, no relvado perto da forja, estavam estacionados três carroções pintados de amarelo e marrom, junto aos quais algumas pessoas com trajes exóticos montavam um rinque para arremesso de bolas contra uma fileira de cocos. Os homens trajavam jérsei azul e as mulheres, aventais brancos e chapéus com enormes plumas. Wodger, dono do pub Purple Fawn, e o sr. Jaggers, o sapateiro, que também vendia bicicletas usadas, estavam juntos esticando sobre a rua varais com bandeiras britânicas e insígnias da realeza, que tinham servido para comemorar o primeiro Jubileu da Rainha Vitória.

E dentro da hospedaria, na penumbra artificial da sala, onde apenas um facho de luz solar penetrava, o estranho, que devemos imaginar faminto àquela altura, e temeroso, escondido no calor e no desconforto dos seus agasalhos, examinava papéis através de suas lentes escuras, ou fazia tilintar suas garrafas empoeiradas, e de vez em quando praguejava com irritação contra os rapazes (invisíveis mas audíveis) que se amontoavam em frente a suas janelas. No canto, perto da lareira, acumulavam-se os cacos de meia dúzia de frascos estilhaçados, e um cheiro pungente de cloro impregnava o ar. Isso é tudo que sabemos, a partir do que foi escutado então, e do que foi visto subsequentemente naquela sala.

Por volta do meio-dia ele escancarou com brusquidão a porta da sala e encarou fixamente as três ou quatro pessoas no balcão.

— Sra. Hall! — disse. Alguém foi às pressas chamar a proprietária.

A sra.