O horror de Dunwich

Créditos

Introdução1

O nome Necronomicon (nekros, cadáver; nomos, lei; eikon, imagem = Uma Imagem [ou Figuração] da Lei dos Mortos) ocorreu-me durante um sonho, embora a etimologia esteja perfeitamente correta.

H.P. Lovecraft

Depois de um período extremamente fértil entre agosto de 1926 e março de 1927 — um breve intervalo durante o qual escreveu obras emblemáticas como “O chamado de Cthulhu”, A busca onírica por Kadath, O caso de Charles Dexter Ward e A cor que caiu do espaço —, a produção de Lovecraft passou por um considerável período de silêncio. Porém, em junho de 1928, o escritor anunciou para o amigo James F. Morton a retomada das atividades ficcionais:

Estou trabalhando na primeira história que escrevi no último ano e meio. Vai se chamar O horror de Dunwich, e é tão demoníaca que Wright talvez não se atreva a publicá-la.

Um dos motivos para a inspiração renovada foi a série de viagens que o autor empreendeu pela Nova Inglaterra por volta desta época: Lovecraft visitou amigos e correspondentes nos estados de Massachusetts e Vermont e ficou muito impressionado com as paisagens naturais e o rico folclore da região. Embora o vilarejo de Dunwich — “um vago eco do interior decadente de Massachusetts nas proximidades de Springfield” — seja fictício, durante o périplo Lovecraft visitou sítios megalíticos na Nova Inglaterra que podem ter inspirado o círculo de pedra mencionado na novela — e logo antes de começar a escrevê-la esteve em Wilbraham, hospedado na casa da correspondente Edith Miniter, com quem aprendeu detalhes relativos ao folclore local que logo foram incorporados à ficção, conforme o autor explicou a August Derleth em agosto de 1928:

A ação se desenrola em meio às colinas abobadadas do vale superior do Miskatonic, a noroeste de Arkham, & foi inspirada por várias antigas lendas da Nova Inglaterra — uma das quais ouvi ainda no mês passado durante a minha estada em Wilbraham.2

O principal elemento folclórico em O horror de Dunwich — a lenda dos bacuraus que rondam as casas com velhos e doentes à espera da alma dos moribundos — apresenta-se na história com uma dicção bastante similar àquela usada pelo autor quando relembrou a visita a Wilbraham e a acolhida de Miniter alguns anos mais tarde:

Vi a antiga residência de Randolph Beebe, uma casa arruinada e deserta onde os bacuraus juntam-se de maneira anormal, e descobri que esses pássaros são temidos pelos rústicos como psicopompos malignos. Conta-se aos sussurros que espreitam e esvoaçam ao redor das casas que aguardam a morte na esperança de capturar a alma do finado no instante da partida. Se a alma escapa, os pássaros dispersam-se em uma decepção silenciosa; porém às vezes irrompem em um clamor de vozes entusiasmadas e triunfantes que leva os espectadores a empalidecerem e balbuciar — com aquele ar de pressentimento silencioso e contido que apenas um ianque do interior é capaz de assumir — “Pegaro ele!”3

Muitos outros detalhes na história que à primeira vista talvez pareçam francamente sobrenaturais — como as convulsões subterrâneas que prenunciam a chegada do horror de Dunwich, a degeneração espiritual e física da família Whateley e as alusões a Sabás das bruxas e rituais de adoração ao demônio praticados no alto da Sentinel Hill — também apresentam bases firmemente assentadas no mundo real.

As menções a “rituais profanos” e “desvairadas preces orgiásticas”, por exemplo, refletem a crença pessoal de Lovecraft em relação à história da bruxaria em Massachusetts:

As características tradicionais da prática da bruxaria e das orgias do Sabá não eram de maneira alguma eventos míticos. […] Acho que alguns dos ritos e das fórmulas do culto devem ter sido discutidos em segredo por certos elementos, e talvez praticados furtivamente por alguns dos degenerados envolvidos. […] Acredito que houve um pano de fundo sórdido e concreto ausente em todos os outros casos de bruxaria na Nova Inglaterra.4

Os “estalos e rumores vindos da terra” que prenunciam a chegada do horror de Dunwich foram inspirados por um fenômeno natural que ocorre na cidade de Moodus, no estado de Connecticut: pequenos abalos sísmicos que ocorrem na região provocam estrondos que podem ser ouvidos de longe — porém, conforme Lovecraft explicou para o correspondente James F. Baldwin em 1934, essa ocorrência era interpretada de maneira bastante distinta pelo folclore local:

Você já ouviu falar dos “Barulhos de Moodus” em Connecticut 200 anos atrás? Esses barulhos consistiam em alarmantes rumores terrestres próximo a colinas solitárias, & os colonos juravam que eram artimanhas do Diabo ou sinais da ira de Deus.5

Até mesmo a divisão da família Whateley entre indivíduos “íntegros” e “decadentes” parece calcada na impressão de Lovecraft sobre os habitantes de Wilbraham, pois o autor escreveu para a tia Lillian D. Clark contando que “A população apresenta uma divisão clara — as boas famílias mantêm os antigos valores, enquanto o populacho se afunda”6

* * *

O elemento central em O horror de Dunwich, no entanto, dispensou todo o folclore existente e criou todo um novo folclore ao redor de si. A história da novela gira em torno de um livro em geral descrito na obra de Lovecraft com os epítetos de “proscrito”, “nefando”, “maldito”, “execrando”, “infame”, “pavoroso”, “monstruoso” e “abominável”; um livro que traz revelações “demasiado horrendas para a sanidade ou a consciência” e faz os homens empalidecerem ao ser mencionado — e não raro arroja o consulente às profundezas da loucura.

Trata-se, evidentemente, do lendário tomo conhecido como Al Azif, To Nekronomik’on ou simplesmente Necronomicon — o infame volume de ocultismo arcaico escrito pelo árabe louco Abdul Alhazred que sem dúvida foi um dos grandes legados de Lovecraft para a ficção de horror como um todo.

A primeira menção ao Necronomicon apareceu em 1922, no conto “O sabujo”, embora a primeira menção ao apócrifo personagem por trás do compêndio blasfemo tenha aparecido um ano antes, em “A cidade sem nome” — mas pelo resto da vida Lovecraft expandiu os comentários e menções ao tomo proscrito nas obras “O festival” (1923), “O descendente” (fragmento, possivelmente 1927), O caso de Charles Dexter Ward (1927), O horror de Dunwich (1928), Um sussurro nas trevas (1930), Nas montanhas da loucura (1931), “Sonhos na casa da bruxa” (1932), A coisa na soleira da porta (1933), A sombra vinda do tempo (1934–1935) e “O assombro das trevas” (1935).

Apesar da aparente riqueza de referências, muitas dessas alusões são extremamente vagas — o que ilustra na prática a crença ficcional de Lovecraft segundo a qual “ninguém consegue produzir nada que provoque sequer a décima parte do espanto e do terror despertados por aquilo que se pode insinuar com ares de gravidade” —, porém um exame atento de todos os contos e novelas listados acima revela que o nefando grimório traz informações relativas pelo menos aos seguintes assuntos, lugares e entidades:

  • Um amuleto de jade que simboliza o culto de necrófagos de Leng, na Ásia Central (“O sabujo”);
  • O culto a Cthulhu (“O chamado de Cthulhu”);
  • “Terríveis mitos anteriores à chegada do homem à Terra — os ciclos de Cthulhu e de Yog-Sothoth” (Um sussurro nas trevas);
  • Entidades que passaram por “uma espécie de semiexistência insana antes que a Terra e os demais mundos pertencentes ao sistema solar fossem criados” — uma provável referência aos Grandes Anciões (Um sussurro nas trevas);
  • Yuggoth, Grande Cthulhu, Tsathoggua, Yog-Sothoth, R’lyeh, Nyarlathotep, Azathoth, Hastur, Yian, Leng, o Lago de Hali, Bethmoora, o Símbolo Amarelo, L’mur-Kathulos, Bran e o Magnum Innominandum (Um sussurro nas trevas);
  • Tsathoggua, a “criatura-deus amorfa e batráquia” (Um sussurro nas trevas);
  • Azathoth, a entidade que “domina todo o tempo e todo o espaço a partir de um trono negro […] no centro do Caos” (“Sonhos na casa da bruxa”) — um nome que antes já havia aparecido como uma referência velada ao “monstruoso caos nuclear além do espaço anguloso” (Um sussurro nas trevas);
  • “Descrições […] estranhas e inquietantes do infame platô de Leng” (Nas montanhas da loucura);
  • As Coisas Ancestrais, que supostamente “criaram toda a vida na Terra como resultado de uma zombaria ou de um equívoco” (Nas montanhas da loucura);
  • Os shoggoths, terríveis aglomerados informes de bolhas protoplásmicas criados pelas Coisas Ancestrais (Nas montanhas da loucura);
  • Nyarlathothep, o arauto de poderes ocultos e terríveis (“Sonhos na casa da bruxa”);
  • Uma fórmula para a execução da metempsicose (A coisa na soleira da porta);
  • Um culto secreto que auxilia as projeções mentais através do tempo executadas pela Grande Raça de Yith (A sombra fora do tempo).
  • Pode-se deduzir também que se trata de uma obra bastante alentada, pois em O horror de Dunwich o Velho Whateley faz menção à página 751 do livro, e Lovecraft afirmou em uma correspondência que “o temível volume tem algo como mil páginas”.

    Quanto ao conteúdo preciso do Necronomicon, no entanto — no que diz respeito a citações exatas e transcrições de passagens —, Lovecraft foi extremamente parcimonioso. “A cidade sem nome” e “O chamado de Cthulhu” mencionam o dístico “Não está morto o que eterno jaz / No tempo a morte é de morrer capaz”, e “O festival” termina com a seguinte citação direta:

    As cavernas mais profundas não se prestam ao exame dos olhos que veem, pois encerram portentos estranhos e terríveis. Maldito é o solo em que pensamentos mortos vivem com novos e estranhos corpos, e vil a mente desprovida de cabeça. Sábio foi Ibn Sachabao ao afirmar que feliz é o túmulo onde nenhum mago deitou-se, e feliz a cidade onde à noite todos os magos são cinzas. Pois segundo um antigo rumor a alma daqueles comprados pelo demônio não se apressa em deixar o lodo sepulcral, mas engorda e instrui o próprio verme que rói; até que da corrupção brota uma vida horrenda, e os torpes necrófagos da terra tramam ardis para afligi-la e incham de forma monstruosa para atormentá-la. Enormes buracos secretos são cavados onde os poros da terra deviam bastar, e coisas que deviam arrastar-se aprenderam a andar.

    Todas as demais referências diretas às páginas do Necronomicon encontram-se em O horror de Dunwich, cujo enredo gira todo em torno do volume maldito. O estranho Wilbur Whateley herda do avô a tradução inglesa do livro — porém a edição parece apresentar lacunas. As últimas palavras ditas pelo velho bruxo moribundo ao neto exortam-no a consultar “a página 751 da edição completa” para terminar um ritual em andamento. Wilbur Whateley faz todo o possível para retirar o exemplar latino do Necronomicon constante no acervo da Universidade do Miskatonic, porém o bibliotecário Henry Armitage, ciente da influência maligna exercida pela obra, frustra esse plano — o que desencadeia no vilarejo uma série de catástrofes que atinge o ponto culminante com o surgimento da entidade que dá nome à novela.

    Ainda que o Necronomicon seja fruto da mais pura fantasia, é evidente que Lovecraft cercou a ficção de referências ocultistas reais para conferir à própria criação bibliográfica uma inquietante atmosfera de verossimilitude. Em 27 de novembro de 1927 o autor escreveu para Clark Ashton Smith dizendo que estava reunindo dados sobre “o célebre & nefando Necronomicon do árabe louco Abdul Alhazred”, e o resultado dessas anotações foi o único escrito do autor que traz mais respostas do que perguntas sobre o tomo maldito — “História do Necronomicon” (1927), um texto de pseudo não-ficção que apresenta um punhado de informações sobre a história do Necronomicon e da vida de Abdul Alhazred.

    Muitos dos nomes constantes nesse breve texto remetem a personagens históricos reais: Olaus Wormius, o suposto tradutor do Necronomicon para o latim, foi o nome latino empregado por Ole Worm, um erudito dinamarquês que se interessava pelo estudo das runas e da pedra filosofal e viveu entre nos séculos xvi-xvii (embora Lovecraft o situe no século xiii); John Dee, o pretenso responsável pela tradução do Necronomicon para o inglês, foi na realidade um estudioso de alquimia, astrologia e divinação que prestou serviços à Rainha Elizabeth i; e Ibn Khallikan, em cujos escritos Lovecraft afirma existirem referências à vida de Abdul Alhazred, foi de fato um biógrafo iraquiano que viveu no século xiii. Porém quase no mesmo fôlego o autor faz referências a criações totalmente ficcionais, como Teodoro Filetas de Constantinopla e o artista desaparecido R.U. Pickman, e desfere o golpe de mestre: lista — ao lado da fictícia biblioteca de Arkham — quatro outras bibliotecas reais que supostamente guardam nos acervos os raríssimos exemplares do Necronomicon.

    Esse esfumaçamento da linha quase sempre clara que separa a realidade da ficção intrigou alguns leitores, e não tardou até que Lovecraft e a seção de cartas da revista Weird Tales — na qual o autor e alguns colegas publicaram vários contos sobre o livro maldito — começassem a receber correspondências perguntando sobre a autenticidade do Necronomicon. Uma correspondência endereçada a Margaret Sylvester em janeiro de 1934 demonstra como Lovecraft costumava responder a esse tipo de questionamento:

    Inventar livros horrendos é um passatempo e tanto entre os devotos da fantasia, & […] muitos dos colaboradores regulares da W.T. levam crédito — ou descrédito — por haverem criado essas coisas. Para os diferentes autores, é divertido usar os demônios & os livros imaginários uns dos outros — de modo que Clark Ashton Smith com frequência menciona o meu Necronomicon enquanto eu faço referências a seu Livro de Eibon […] e assim por diante. Essa concentração de recursos tende a criar um pano de fundo um tanto pseudoconvincente de mitologias, lendas & bibliografias obscuras.7

    Cabe lembrar que, como ateu e materialista convicto, Lovecraft não nutria a mais remota crença em fenômenos ou rituais ocultistas, e chegou a afirmar que essas obras eram “um mero registro da puerilidade e da ingenuidade de eras passadas”. Mesmo assim, a popularidade cada vez maior do Necronomicon e as adições constantes à pseudomitologia do execrando volume levaram Lovecraft a afirmar poucos meses antes de morrer que

    Se a lenda do Necronomicon continuar a crescer as pessoas vão acabar acreditando nela e me acusando de falsificação quando eu revelar a origem verdadeira de tudo!8

    Se soubesse que hoje existe mais de uma obra espúria que se anuncia como o “verdadeiro” Necronomicon, talvez Lovecraft desse uma “cachinada demoníaca” como os bacuraus de Dunwich.

    1.1  Bibliografia

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    CLORE, Dan. “The Lurker on the Threshold of Interpretation: Hoax Necronomicons and Paratextual Noise”. Em: clore, Dan. The Unspeakable and Others. Holicong: Wildside Press, 2001.


    HARMS, Daniels; gonce iii, John Wisdom. The Necronomicon Files: The Truth Behind Lovecraft’s Legend. York Beach: Red Wheel/Weiser, 2003.


    LOVECRAFT, H.P. A sombra vinda do tempo. Organização, apresentação, apêndice e tradução de Guilherme da Silva Braga.