Na testa havia uma chaga redonda que carcomia a pele e que estava besuntada de pomada. Uma boca banguela sulcada com um lábio inferior caído e caprichoso. Pareceu a Pilatos que as colunas cor-de-rosa da varanda e os telhados de Yerushalaim sumiram, ao longe, abaixo, além do jardim, e que tudo em volta estava mergulhado no denso verde dos jardins de ciprestes. E aconteceu algo estranho com seu ouvido, como se ao longe tocassem trombetas, baixinho e ameaçadoramente, e com muita clareza se ouvisse uma voz anasalada, que pronunciava arrastadamente as palavras soberanas: “A lei sobre a ofensa da majestade...”
Pensamentos curtos, desconexos e incomuns surgiram: “Estou perdido!..”, e depois: “Estamos perdidos!..” E entre eles um pensamento totalmente absurdo sobre uma tal de imortalidade, e a imortalidade, por algum motivo, provocou-lhe uma tristeza insuportável.
Pilatos esforçou-se, afastou as visões, voltou o olhar para a varanda e, novamente, surgiram diante dele os olhos do prisioneiro.
— Ouça, Ha-Notzri — começou a dizer o procurador, olhando para Yeshua de maneira um tanto estranha: o rosto do procurador estava terrível, mas os olhos preocupados —, alguma vez você disse algo sobre o grande César? Responda! Disse?... Ou... não... disse? — Pilatos esticou a palavra “não” um pouco mais do que deveria num tribunal e, com seu olhar, enviou a Yeshua algum pensamento que parecia querer incutir no prisioneiro.
— Dizer a verdade é fácil e agradável — observou o prisioneiro.
— Eu não preciso saber — respondeu Pilatos com a voz abafada e maldosa — se para você é agradável ou desagradável dizer a verdade. Mas você é obrigado a dizê-la. Porém, quando falar, pese cada palavra caso não deseje uma morte não só inevitável, como também dolorosa.
Ninguém sabe o que aconteceu com o procurador da Judeia, mas ele se permitiu levantar a mão, como se estivesse se defendendo de um raio de sol e, por trás dessa mão, como atrás de um escudo, quisesse enviar ao prisioneiro algum olhar alusivo.
— Então, responda — dizia ele. — Por acaso você conhece um certo Judas de Kerioth e o que exatamente lhe disse, caso tenha falado, sobre o César?
— Foi assim — começou a narrar o prisioneiro com gosto. — Anteontem à noite, eu conheci perto do templo um jovem que se apresentou como Judas, da cidade de Kerioth. Ele me convidou para ir a sua casa na Cidade Baixa e me recebeu muito cordialmente...
— Bom homem? — perguntou Pilatos, um fogo diabólico brilhando em seus olhos.
— Bom homem e muito curioso — confirmou o prisioneiro. — Ele demonstrou o maior interesse por meus pensamentos e foi muito hospitaleiro comigo...
— Acendeu as luminárias... — de dentes cerrados e no mesmo tom do prisioneiro, Pilatos pronunciou com os olhos brilhando.
— Acendeu — continuou Yeshua, um pouco surpreso com o conhecimento de causa do procurador. — Pediu-me que expressasse a minha opinião sobre o poder do Estado. Ele estava extremamente interessado por essa questão.
— E o que foi que você disse? — perguntou Pilatos. — Ou você vai responder que esqueceu o que disse? — Já havia desespero em seu tom.
— Entre outras coisas, eu disse — contava o prisioneiro — que qualquer poder é uma violência contra as pessoas e que chegará o tempo em que não haverá mais o poder nem dos Césares, nem qualquer outro poder. O homem passará para o reino da verdade e da justiça, onde não haverá necessidade de poder algum.
— Prossiga!
— Não houve mais nada — disse o prisioneiro. — Depois uns homens entraram correndo e começaram a me amarrar e me levaram para a prisão.
O secretário, tentando não perder uma palavra sequer, traçava as palavras no pergaminho rapidamente.
— Nunca houve, não há e não haverá no mundo poder mais grandioso e maravilhoso para as pessoas do que o poder do imperador Tiberius! — cresceu a voz rasgada e doente de Pilatos.
O procurador, por algum motivo, olhava com ódio para o secretário e para o corpo de guardas.
— E não é você, um criminoso demente, que deve discutir sobre ele! — Então Pilatos gritou: — Retirem o corpo de guardas da varanda! — E, voltando-se para o secretário, acrescentou: — Deixem-me a sós com o criminoso. É um assunto de Estado.
O corpo de guardas levantou as lanças e, batendo ritmicamente com as cáligas no chão, saiu da varanda para o jardim, e atrás dele saiu também o secretário.
O silêncio na varanda, durante algum tempo, só era interrompido pela canção da água do chafariz. Pilatos via como a água jorrava no prato sobre o tubo, deslizando pelas bordas e caindo em filetes.
O prisioneiro falou primeiro:
— Vejo que ocorreu alguma desgraça por causa de minha conversa com esse jovem de Kerioth. Eu, Hegemon, tenho um pressentimento de que com ele acontecerá algum infortúnio, e tenho muita pena.
— Eu acho — respondeu o procurador, sorrindo de forma irônica e estranha — que existe mais gente no mundo de quem você deveria sentir mais pena do que de Judas de Kerioth e que deve sofrer bem mais do que Judas! Então, Marcos Mata-ratos, um carrasco frio e convencido, as pessoas, que, como vejo — o procurador apontou para o rosto deformado de Yeshua —, bateram em você por causa de sua pregação, os bandidos Dismas e Gestas, que com seus comparsas mataram quatro soldados, e, finalmente, o sujo traidor Judas... todos eles são bons homens?
— São — respondeu o prisioneiro.
— E virá o reino da verdade?
— Virá, Hegemon — respondeu Yeshua com firmeza.
— Ele nunca virá! — Pilatos começou a gritar de repente, com uma voz tão terrível que Yeshua se afastou. Havia muitos anos, no vale das Virgens, Pilatos gritara as seguintes palavras a seus soldados: “Degolem-nos! Degolem-nos! O grandioso Mata-ratos foi preso!” Ele aumentou ainda mais a voz rasgada por causa das ordens, chamando de maneira que suas palavras fossem ouvidas no jardim: — Criminoso! Criminoso! Criminoso!
Depois, diminuindo o tom de voz, perguntou:
— Yeshua Ha-Notzri, você acredita em deuses?
— Existe apenas um Deus — respondeu Yeshua. — Acredito nele.
— Então reze para ele! Reze muito! Aliás... — a voz de Pilatos falseou — isso não o ajudará. Você não tem mulher? — Pilatos perguntou, por alguma razão, com tristeza, sem entender o que lhe estava passando.
— Não, sou sozinho.
— Cidade odiosa... — o procurador, por alguma razão, balbuciou de repente, encolhendo os ombros. — Se o tivessem matado antes de seu encontro com Judas de Kerioth, realmente, teria sido melhor.
— E você poderia me soltar, Hegemon — pediu o prisioneiro inesperadamente, e sua voz pareceu preocupada. — Vejo que querem me matar.
O rosto de Pilatos desfigurou-se em uma convulsão, e ele voltou para Yeshua seus olhos irritados e cobertos de veias vermelhas, dizendo:
— Você supõe, seu infeliz, que o procurador romano soltará um homem que disse o que você disse? Oh, deuses, deuses! Ou você pensa que estou pronto para ocupar o seu lugar? Eu não partilho de seus pensamentos! E ouça: se, a partir desse minuto, você pronunciar uma palavra sequer, se começar a falar com alguém, tome cuidado comigo! Repito: tome cuidado!
— Hegemon...
— Calado! — gritou Pilatos e, com um olhar desvairado, acompanhou a andorinha que sobrevoou de novo a varanda.
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