Deus lhe poupa a vida, mas não o filho que teria com Betsabá. Embora a culpa seja tematizada no romance, a batalha de citações bíblicas parece, sim, reforçar a leitura esvaziada do texto bíblico, satirizada pela autora.
22. Como no Salmo 149, versículos 6 e 9: “Estejam na sua garganta os altos louvores de Deus, e espada de dois fios nas suas mãos ... Para fazerem neles o juízo escrito; esta será a honra de todos os seus santos. Louvai ao Senhor.”
23. A frase tem forte ressonância bíblica, presente, em diferentes versões, em Gênesis 16:12 (“E ele será homem feroz, e a sua mão será contra todos, e a mão de todos contra ele; e habitará diante da face de todos os seus irmãos”) e Isaías 19:2 (“Porque farei com que os egípcios se levantem contra egípcios, e cada um pelejará contra o seu irmão, e cada um contra o seu próximo, cidade contra cidade, reino contra reino”).
24. O caráter cômico do pesadelo de Lockwood se relaciona a um contexto maior de comentários dos Brontë à vida e à doutrina religiosa. Janet Gezari (ver nota 17) observa que a prosa de Charlotte Brontë cultiva uma perspectiva mais dura da organização religiosa, assinalando a hipocrisia do clero; já Anne procura dar resposta a questões de fundo teológico e doutrinário. É comum relacionar o sermão de Jabez Branderham ao material literário de Bramwell Brontë, único filho de Patrick Brontë. Entre seus vários e inconclusos projetos literários, Bramwell lançara-se em 1845 à produção de um romance, And the Weary Are at Rest (“E ali repousam os cansados”, frase extraída de Jó 3:17). Os dois fragmentos que dele restaram – nos quais Bramwell recupera personagens desenvolvidas juntamente com Charlotte em torno de seu jogo narrativo de juventude, o universo de Angria (ver a Apresentação a este volume) – sugerem um forte veio satírico.
25. As experiências científicas com eletricidade na primeira metade do séc.XIX, no sentido de transmiti-la e armazená-la, foram decisivas para invenções como o telégrafo e a bateria; segundo Janet Gezari, porém, a presença da descarga elétrica do raio remonta a uma possível referência literária de Brontë: Frankenstein (1818), de Mary Shelley (ver nota 79).
26. O goblin é uma espécie de demônio de formas grotescas, assemelhadas às do duende. Como figura folclórica, aparece em toda a Europa, sobretudo a anglo-saxã.
27. A referência no original é a changelling, figura lendária, presente em diferentes culturas europeias: uma criança deixada por fadas, trolls e demônios em lugar de recém-nascidos humanos. As razões para a troca variam de cultura a cultura. Para os escandinavos, ocorria pois os trolls (figura do folclore nórdico) desejavam uma educação humana para seus próprios filhos; já no folclore irlandês, as fadas eram atraídas pela beleza das crianças humanas, e a crença nos poderes malignos do changelling não raro levou bebês à morte. No norte da Inglaterra, acreditava-se que elfos ou fadas poderiam trocar um neném de colo por uma imitação de bebê, geralmente um elfo adulto, que futuramente se revelaria uma criança difícil. As verdadeiras crianças eram, por sua vez, levadas para a Colina dos Elfos. Ao lado da questão dialetal, Emily Brontë inclui em sua narrativa elementos de uma cultura popular de forte fundo nórdico, a contrastar com a erudição cosmopolita.
28. Em italiano no original: em voz baixa.
29. Thrushcross Park corresponde à área verde que cerca Thrushcross Grange. Pela distância entre o portão da propriedade e a casa principal, tratava-se de um vasto domínio, mais apropriado, no contexto inglês, à posse de famílias com título de nobreza (o que não era o caso dos Linton). Sobre as distinções sociais entre as famílias Linton e Earnshaw, ver notas 44, 46 e 63.
CAPÍTULO 4
COMO SOMOS VOLÚVEIS! Eu, que estava determinado a me manter afastado de todo convívio social e que agradecia às estrelas por ter enfim encontrado um lugar onde ele era quase impraticável, eu, um fraco imprestável, após lutar até o anoitecer com o desânimo e a solidão, fui por fim compelido a pedir trégua. Sob o pretexto de me informar acerca das necessidades da casa, solicitei à sra. Dean, quando ela me trouxe o jantar, que se sentasse enquanto eu comia, na esperança de que fosse do tipo que gosta de falar e conseguisse me animar ou embalar meu sono com sua conversa.
– Faz bastante tempo que a senhora vive aqui – comecei. – Dezesseis anos, não foi o que disse?
– Dezoito, senhor. Vim trabalhar para a patroa quando ela se casou. Depois que morreu, o patrão quis que eu ficasse como governanta.
– Ah, é mesmo?
Seguiu-se uma pausa. Ela não era, afinal, de muita conversa, a menos que fosse sobre seus próprios assuntos, que não me interessavam nem um pouco.
Após refletir por um instante, porém, e com os punhos fechados sobre os joelhos e uma expressão pensativa no rosto corado, exclamou:
– Ah, as coisas mudaram muito, desde então!
– Sim – comentei –, a senhora sem dúvida testemunhou muitas alterações, suponho?
– De fato.
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