A senhora sabe alguma coisa acerca de sua história?

– É a história de um cuco...30 sei tudo, exceto onde nasceu e quem eram seus pais e como conseguiu ficar rico. E Hareton foi banido como um pardalzinho sem plumas! O pobre rapaz é a única pessoa, em toda esta paróquia, que não desconfia de como foi enganado.

– Bem, sra. Dean, seria um ato de caridade me contar alguma coisa de meus vizinhos. Sinto que não vou conseguir dormir se for me deitar, então seja gentil e fique aqui conversando comigo por mais uma hora.

– Ah, claro que sim, meu senhor! Vou buscar minha costura, depois fico pelo tempo que o senhor quiser. Mas vejo que pegou um resfriado. Notei que tremia. Precisa tomar um bom mingau para se curar.

A boa mulher saiu apressada, e me aproximei um pouco mais do fogo. Sentia a cabeça quente, e o restante do corpo gelado. Além disso, meus nervos e meu cérebro estavam tomados por uma excitação quase delirante. Mais do que desconfortável, isso me deixava temeroso (como ainda estou) de que os incidentes daqueles dois dias tivessem sérios efeitos.

Ela regressou sem demora, trazendo uma vasilha fumegante e um cesto de costura. Colocando a primeira na beirada da lareira, puxou a cadeira para a frente, visivelmente contente por me ver tão sociável.

ANTES DE VIR MORAR AQUI – ela começou, sem esperar outro convite para iniciar sua história –,31 eu estava quase sempre em Wuthering Heights. Minha mãe criara o sr. Hindley Earnshaw, o pai de Hareton, e eu me acostumara a brincar com as crianças. Fazia uma tarefa ou outra, também, e ajudava a preparar o feno; ficava por ali, na fazenda, pronta para qualquer serviço que quisessem me dar.

Uma bela manhã de verão, lembro que era no princípio da colheita, o velho patrão, o sr. Earnshaw, desceu vestido para viajar. Depois de dizer a Joseph o que tinha de ser feito naquele dia, virou-se para Hindley, Cathy e para mim, que tomava meu mingau com eles, e disse, dirigindo-se ao filho:

– Muito bem, meu caro rapaz, vou a Liverpool32 hoje... O que quer que eu lhe traga? Pode escolher o que quiser, desde que seja algo pequeno, pois vou e volto a pé: noventa e tantos quilômetros para ir e o mesmo para voltar, isso é bastante coisa!

Hindley disse que queria uma rabeca, e então o patrão fez a mesma pergunta à srta. Cathy. Ela mal completara seis anos, mas montava qualquer cavalo da estrebaria, e pediu um chicote.

Ele não se esqueceu de mim, pois tinha bom coração, embora fosse às vezes bastante severo. Prometeu me trazer um saco de peras e maçãs, e então deu um beijo de despedida nos filhos e partiu.

Os três dias em que esteve ausente pareceram-nos muito tempo, e com frequência a pequena Cathy perguntava quando ele voltaria. A sra. Earnshaw o esperava para o jantar do terceiro dia e, hora após hora, atrasava a refeição, mas nada de ele chegar. Por fim as crianças se cansaram de correr até o portão para ver. Escureceu; ela queria colocar os filhos na cama, mas eles suplicaram tristemente que lhes deixasse esperar o pai acordados. Eram quase onze horas quando o trinco da porta se abriu sem ruído e o patrão entrou. Jogou-se numa cadeira, rindo e gemendo, e pediu que o deixassem, pois estava mais morto do que vivo – jamais voltaria a fazer uma caminhada daquelas, nem mesmo pelos três reinos.33

– Ainda por cima, quase morrer de medo! – disse ele, abrindo o casaco, que trazia embalado como um fardo nos braços. – Veja, mulher! Nunca fui tão castigado por algo em toda a minha vida; mas você deve considerá-lo um presente de Deus, mesmo sendo tão escuro que mais parece ter vindo do Diabo.34

Juntamo-nos ao redor dele, e por cima da cabeça da srta. Cathy vi de relance uma criança suja, maltrapilha, de cabelos pretos. Era grande o suficiente para andar e falar; pelo rosto, parecia na verdade mais velho do que Catherine. Mas quando o puseram de pé só o que fez foi ficar olhando ao redor e repetir umas palavras sem nexo que ninguém conseguia entender.