Desde então, ele tem sido um estranho para mim. É curioso pensar assim, mas não tenho dúvidas de que se esqueceu por completo de Ellen Dean, ele que já foi tudo no mundo para ela, e vice-versa!
NESSE PONTO DA HISTÓRIA, a governanta olhou de relance para o relógio acima da chaminé; ficou espantada ao ver os ponteiros marcando uma e meia. Não quis ficar nem mais um segundo. Na verdade, eu próprio já queria deixar o restante da narrativa para outra ocasião. E agora que ela foi descansar e fiquei imerso ainda em reflexões por mais uma hora ou duas, devo criar coragem para fazer o mesmo, apesar do torpor que toma conta do meu corpo.
48. Nelly canta os versos de uma balada dinamarquesa, “Svend Dyring”. O tema da balada se alinha à derrocada de Hindley e aos maus-tratos que dedica a seu filho, Hareton, depois da morte da mãe.
49. Oriundo da Magna Grécia (séc.VI a.C.), Mílon foi exímio lutador, vencedor de inúmeros festivais atléticos gregos e, segundo comentadores, líder militar. A passagem faz menção à sua morte. Consta, em Estrabão e Pausânias, que Mílon encontrara num bosque um tronco cuja rachadura estava preenchida por cunhas. Numa demonstração de força, quis enfiar as mãos no lugar das cunhas para rachar a madeira usando apenas os braços; no entanto, ao tirá-las, a rachadura cedeu, e suas mãos ficaram presas na fenda da árvore. Sem conseguir se soltar, Mílon morreu devorado por lobos.
50. Segundo o Livro do Gênesis (19:24), Ló, sobrinho de Abraão, era visto por Deus como um homem justo. A ele foi permitido escapar de Sodoma, onde vivia, antes que Deus a destruísse com fogo e enxofre para punir a depravação de seus habitantes. Já Noé (Gênesis 6-9), o décimo dos patriarcas antediluvianos, foi orientado por Deus a construir uma arca que, povoada de animais, sobreviveria ao dilúvio com que o Todo-Poderoso pretendia limpar a terra dos erros de sua criação.
51. Jonas é a personagem principal do Livro de Jonas, do Velho Testamento. Depois de receber ordens de Deus para ir a Nínive, a fim de profetizar contra a depravação da cidade, ele decide fugir da presença divina, indo a Jafa e seguindo, de navio, em direção oposta à pedida por Deus. Uma imensa tempestade cai em alto-mar, e os marinheiros a bordo, suspeitando não se tratar de uma tempestade comum, decidem investigá-la. Descobrem ser Jonas a razão da procela lançada por Deus e, depois de o flagrarem em atitude suspeita, deixam-no à deriva. No mar, Jonas é engolido por uma baleia, dentro da qual se arrepende de sua fuga e aceita fazer a vontade divina.
CAPÍTULO 10
QUE BELO COMEÇO para uma vida de eremita! Quatro semanas de tortura, inquietude e doença! Ah, estes ventos gélidos e estes céus fechados do norte, estas estradas intransitáveis e estes médicos de aldeia que demoram tanto a chegar! E, ah, esta ausência de semblantes humanos! E, o pior de tudo, a terrível recomendação feita por Kenneth de que eu não tenha esperanças de sair de casa antes da primavera!
O sr. Heathcliff acaba de me conceder a honra de uma visita. Há cerca de uma semana ele me mandou um par de perdizes – as últimas da estação. Canalha! Não está totalmente isento de culpa por esta minha doença, e eu pretendia lhe dizer isso. Mas, ai de mim!, como poderia ofender um homem que teve a caridade de se sentar à minha cabeceira durante uma hora e conversar sobre outros assuntos que não fossem comprimidos e poções, ampolas e sanguessugas?
Foi um alívio. Estou fraco demais para ler, mas sinto que preciso de distração. Por que não chamar a sra. Dean e pedir que termine sua história? Lembro-me dos incidentes principais, até onde ela chegou. Sim, lembro-me de que o herói fugira, e dele não se ouvira mais falar durante três anos, e a heroína se casara. Vou tocar a campainha, ela vai ficar contente ao me ver disposto a ter uma conversa animada.
A sra. Dean veio.
– Faltam vinte minutos ainda para o senhor tomar o remédio – começou a dizer.
– Chega, chega disso! – repliquei.
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