A única alteração mais substancial diz respeito ao sotaque típico de Yorkshire de um dos personagens, o empregado Joseph, que Charlotte achou por bem abrandar, para melhor compreensão do público. O morro dos ventos uivantes teve então uma segunda edição, novamente acompanhado de Agnes Grey, além de um prefácio e uma nota biográfica escritos por Charlotte.5

Nessa nota biográfica sobre as duas irmãs já falecidas, ela assim definiu Emily: “Mais forte que um homem, mais simples que uma criança, sua natureza era única.”

Um romance de várias faces

O morro dos ventos uivantes pode ser lido como uma história de amor. Mas não de um conflito sentimental simples. Embora o romance gire em torno do triângulo formado pelos personagens Heathcliff, Catherine Earnshaw e Edgar Linton, a característica que distingue o livro é menos essa premissa básica e mais a transformação, para pior, do caráter humano – ou da psicologia, ou da alma, como se quiser chamar – quando exposto ao sofrimento. Os protagonistas e a maioria dos personagens da história, ao vivenciarem a dor, a rejeição, a morte dos entes queridos, têm suas virtudes atrofiadas e suas fraquezas de caráter amplificadas. O morro dos ventos uivantes, nesse sentido, pode ser lido como um estudo da degradação humana provocada pelas injustiças e inclemências do destino.

Heathcliff é um menino de rua, sem origem conhecida, posição social ou educação. De pele escura, cabelo escuro, é referido como “cigano” mais de uma vez no romance. Enfrenta um nítido preconceito racial na pequena e retrógrada sociedade rural onde passa a viver após ser adotado pelo sr. Earnshaw, proprietário da fazenda Wuthering Heights. Catherine, filha do sr. Earnshaw, identifica-se com o temperamento indômito do irmão postiço na infância, e se apaixona por ele mais tarde, embora tenha consciência do desnível social e cultural entre os dois. A terceira ponta do triângulo, Edgar Linton, é um jovem de boa família e educação esmerada. Ele irá precipitar os acontecimentos do enredo, fatos dolorosos e agressões mútuas, ao atrair Catherine justamente por ser o oposto de Heathcliff.

Outro eixo do romance é o enfrentamento entre Heathcliff e o irmão biológico de Catherine, Hindley. Este, ainda pequeno, é preterido pelo pai e pela irmã após a chegada do menino cigano em sua casa. Como vingança, sempre que pode agride-o, verbal ou fisicamente, difama-o e humilha-o. Heathcliff, de sua parte, aprende a odiar. O confronto entre os dois personagens atravessará sua infância e vida adulta.

O terceiro eixo do romance é, digamos assim, territorial. Consiste na tensão entre as duas maiores propriedades da região vizinha à cidade de Gimmerton, no norte da Inglaterra: Wuthering Heights, fazenda rústica nas terras altas das charnecas, e Thrushcross Grange, uma mansão cercada por um parque de amplitude descomunal. Oscilando entre esses dois espaços, são triturados os destinos de protagonistas, seus descendentes e agregados.

Outros personagens, igualmente sugados para o vórtice de (des)amor, ressentimento e fantasmagoria, são: o irmão de Catherine, Hindley, e a filha dela, também chamada Cathy; sua cunhada Frances e o sobrinho Hareton; a irmã e o sobrinho de Edgar, Isabella e Linton; os empregados Nelly e Joseph.

O morro dos ventos uivantes adota uma estratégia narrativa bastante curiosa, e talvez incomum nos romances da primeira metade do século XIX. Aparentemente, tem um narrador tradicional, em primeira pessoa, o sr. Lockwood, homem rico, culto e locatário de Thrushcross Grange, que chega à região por volta de 1801. Essa ilusão de normalidade narrativa se mantém, com mais ou menos rigor, até o fim do terceiro capítulo, quando sua curiosidade é despertada pelo ambiente disfuncional que, por acaso, encontrara numa visita a Wuthering Heights, residência de seu vizinho e locador, o velho Heathcliff. Ele então busca informações com a fiel empregada Nelly. Servindo aos Earnshaw há três gerações, ela sabe por que os habitantes da propriedade são tão estranhos.

A partir daí Lockwood e Nelly conversam e é através de um diálogo, portanto, que ela se torna a segunda narradora. Quando narra, ela também o faz diretamente, usando a primeira pessoa. Se os acontecimentos descritos são remotos, Nelly ocupa a função de narrar; se contemporâneos ao diálogo, Lockwood assume a tarefa. Essa conversa se dá, portanto, entre dois personagens opostos e complementares: um homem culto, de fora da comunidade local, e uma mulher sem ensino formal, nascida na comunidade. Como ambos narram em primeira pessoa, alternam momentos de predominância e, sendo as duas metades da compreensão dos acontecimentos, o conjunto de sua narrativa faz o assombro e a insensatez do que é narrado parecer crível e verossímil.

Mas, detalhe: mesmo Nelly não participou de todos os episódios que narra, alguns sequer testemunhou. Sabe o que aconteceu por terceiros, integrantes do triângulo amoroso ou eventuais personagens secundários. Curiosamente, quando relata o que Nelly não poderia saber por si só, Emily Brontë expandiu a lógica do diálogo e concedeu também a esses terceiros o uso da primeira pessoa.