– Mas arranje tudo antes. E não se demore, hein?
Juliana subiu logo à cozinha. Era no segundo andar, com duas janelas de sacada para as traseiras, larga, ladrilhada de tijolo diante do fogão.
– Diz que sim, senhora Joana – disse à cozinheira –, que podia ir. Vou-me vestir. Ela também está quase pronta. Fica vossemecê com a casa por sua!
A cozinheira fez-se vermelha, pôs-se a cantar, foi logo sacudir, estender na varanda um velho tapete esfiado; e os seus olhos não deixavam, defronte, uma casa baixa, pintada de amarelo, com um portal largo – a loja de marceneiro do tio João Galho, onde trabalhava o Pedro, o seu amante. A pobre Joana “babava-se” por ele. Era um rapazola pálido e afadistado; Joana era minhota, de Avintes, de família de lavrador, e aquela figura delgada de lisboeta anêmico seduzia-a com uma violência abrasada. Como não podia sair à semana, metia-o em casa, pela porta de trás, quando estava só; estendia então na varanda para dar sinal o velho tapete desbotado, onde ainda se percebiam os paus de um veado.
Era uma rapariga muito forte, com peitos de ama, o cabelo como azeviche, todo lustroso do óleo de amêndoas doces. Tinha a testa curta de plebeia teimosa. E as sobrancelhas cerradas faziam-lhe parecer o olhar mais negro.
– Ai! – suspirou Juliana. – A senhora Joana é que a leva! – A rapariga ficou escarlate.
Mas Juliana acudiu logo:
– Olha o mal! fosse eu! Boa! faz muito bem!
Juliana lisonjeava sempre a cozinheira: dependia dela; Joana dava-lhe caldinhos às horas da debilidade, ou, quando ela estava mais adoentada, fazia-lhe um bife às escondidas da senhora. Juliana tinha um grande medo de “cair em fraqueza”, e a cada momento precisava tomar a “sustância”. Decerto, como feia e solteirona detestava aquele “escândalo do carpinteiro”; mas protegia-o, porque ele valia muitos regalos aos seus fracos de gulosa.
– Fosse eu! – repetiu. – Dava-lhe o melhor da panela! Se a gente ia a ter escrúpulos por causa dos amos, boa! Olha quem! Veem uma pessoa a morrer, e é como fosse um cão.
E com um risinho amargo:
– Diz que me não demorasse no médico. É como quem diz, cura-te depressa ou espicha depressa!
Foi buscar a vassoura a um canto, e com um suspiro agudo:
– Todas o mesmo, uma récua!
Desceu, começou a varrer o corredor. Toda a noite estivera doente: o quarto no sótão, debaixo das telhas, muito abafado, com um cheiro de tijolo cozido, dava-lhe enjoos, faltas de ar, desde o começo do verão: na véspera até vomitara! E, já levantada às seis horas, não descansara, limpando, engomando, despejando, com a pontada no lado e todo o estômago embrulhado! Tinha escancarado a cancela, e com grandes ais, atirava vassouradas furiosas contra as grades do corrimão.
– A senhora dona Luísa está em casa?
Voltou-se. Nos últimos degraus da escada estava um sujeito, que lhe pareceu “estrangeirado”. Era trigueiro, alto, tinha um bigode pequeno levantado, um ramo na sobrecasaca azul, e o verniz dos seus sapatos resplandecia.
– A senhora vai sair – disse ela olhando-o muito. – Faz favor de dizer quem é?
O indivíduo sorriu.
– Diga-lhe que é um sujeito para um negócio. Um negócio de minas.
Luísa, diante do toucador, já de chapéu, metia numa casa do corpete dois botões de rosa de chá.
– Um negócio! – disse muito surpreendida. – Deve ser algum recado para o senhor Jorge, decerto! Mande entrar. Que espécie de homem é?
– Um janota!
Luísa desceu o véu branco, calçou devagar as luvas de peau de suède claras, deu duas pancadinhas fofas ao espelho na gravata de renda, e abriu a porta da sala. Mas quase recuou, fez ah! toda escarlate. Tinha-o reconhecido logo. Era o primo Basílio.
Houve um shake-hands demorado, um pouco trêmulo. Estavam ambos calados: – ela com todo o sangue no rosto, um sorriso vago; ele fitando-a muito, com um olhar admirado. Mas as palavras, as perguntas vieram logo, muito precipitadamente: Quando tinha ele chegado? Se sabia que ele estava em Lisboa? Como soubera a morada dela?
Chegara na véspera no paquete de Bordéus. Perguntara no Ministério: disseram-lhe que Jorge estava no Alentejo, deram-lhe a adresse...
– Como tu estás mudada, Santo Deus!
– Velha?
– Bonita!
– Ora!
E ele, que tinha feito? Demorava-se?
Foi abrir uma janela, dar uma luz larga, mais clara. Sentaram-se.
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