Ele no sofá muito languidamente; ela ao pé, pousada de leve à beira duma poltrona, toda nervosa.
Tinha deixado o degredo – disse ele. – Viera respirar um pouco à velha Europa. Estivera em Constantinopla, na Terra Santa, em Roma. O último ano passara-o em Paris. Vinha de lá, daquela aldeola de Paris! – Falava devagar, recostado, com um ar íntimo, estendendo sobre o tapete, comodamente, os seus sapatos de verniz.
Luísa olhava-o. Achava-o mais varonil, mais trigueiro. No cabelo preto anelado havia agora alguns fios brancos: mas o bigode pequeno tinha o antigo ar moço, orgulhoso e intrépido; os olhos, quando ria, a mesma doçura amolecida, banhada num fluido. Reparou na ferradura de pérola da sua gravata de cetim preto, nas pequeninas estrelas brancas bordadas nas suas meias de seda. A Bahia não o vulgarizara. Voltava mais interessante!
– Mas tu, conta-me de ti – dizia ele com um sorriso, inclinado para ela. – És feliz, tens um pequerrucho...
– Não – exclamou Luísa rindo. – Não tenho! Quem te disse?
– Tinham-me dito. E teu marido demora-se?
– Três, quatro semanas, creio.
Quatro semanas! Era uma viuvez! Ofereceu-se logo para a vir ver mais vezes, parar um momento, pela manhã...
– Pudera não! És o único parente, que tenho, agora...
Era verdade!... E a conversação tomou uma intimidade melancólica: falaram da mãe de Luísa, a tia Jojó, como lhe chamava Basílio. Luísa contou a sua morte, muito doce, na poltrona, sem um ai...
– Onde está sepultada? – perguntou Basílio com uma voz grave; e acrescentou, puxando o punho da camisa de chita: – Está no nosso jazigo?
– Está.
– Hei de ir lá. Pobre tia Jojó!
Houve um silêncio.
– Mas tu ias sair! – disse Basílio de repente, querendo erguer-se.
– Não! – exclamou. – Não! Estava aborrecida, não tinha nada que fazer, ia tomar ar. Não saio, já.
Ele ainda disse:
– Não te prendas...
– Que tolice! Ia à casa duma amiga passar um momento.
Tirou logo o chapéu; naquele movimento os braços erguidos repuxaram o corpete justo, as formas do seio acusaram-se suavemente.
Basílio torcia a ponta do bigode devagar; e vendo-a descalçar as luvas:
– Era eu antigamente quem te calçava e descalçava as luvas... Lembras-te?... Ainda tenho esse privilégio exclusivo, creio eu...
Ela riu-se.
– Decerto que não...
Basílio disse então, lentamente, fitando o chão:
– Ah! Outros tempos!
E pôs-se a falar de Colares: a sua primeira ideia, mal chegara, tinha sido tomar uma tipoia e ir lá: queria ver a quinta; ainda existiria o balouço debaixo do castanheiro? ainda haveria o caramanchão de rosinhas brancas, ao pé do Cupido de gesso que tinha uma asa quebrada?...
Luísa ouvira dizer que a quinta pertencia agora a um brasileiro: sobre a estrada havia um mirante com um teto chinês, ornado de bolas de vidro; e a velha casa morgada fora reconstruída e mobilada pelo Gardé.
– A nossa pobre sala de bilhar, cor de oca, com grinaldas de rosas! – disse Basílio; e fitando-a: – Lembras-te das nossas partidas de bilhar?
Luísa, um pouco vermelha, torcia os dedos das luvas; ergueu os olhos para ele, disse, sorrindo:
– Éramos duas crianças!
Basílio encolheu tristemente os ombros, fitou as ramagens do tapete: parecia abandonar-se a uma saudade remota, e com uma voz sentida:
– Foi o bom tempo! Foi o meu bom tempo!
Ela via a sua cabeça benfeita, descaída naquela melancolia das felicidades passadas, com uma risca muito fina, e os cabelos brancos – que lhe dera a separação. Sentia também uma vaga saudade encher-lhe o peito: ergueu-se, foi abrir a outra janela, como para dissipar na luz viva e forte aquela perturbação. Perguntou-lhe então pelas viagens, por Paris, por Constantinopla.
Fora sempre o seu desejo viajar – dizia – ir ao Oriente. Quereria andar em caravanas, balouçada no dorso dos camelos; e não teria medo, nem do deserto, nem das feras...
– Estás muito valente! – disse Basílio. – Tu eras uma maricas, tinha medo de tudo... Até da adega, na casa do papá, em Almada!
Ela corou. Lembrava-se bem da adega, com a sua frialdade subterrânea que dava arrepios! A candeia de azeite pendurada na parede alumiava com uma luz avermelhada e fumosa as grossas traves cheias de teias de aranha, e a fileira tenebrosa das pipas bojudas. Havia ali às vezes, pelos cantos, beijos furtados...
Quis saber então o que tinha feito em Jerusalém, se era bonito.
Era curioso. Ia pela manhã um bocado ao Santo Sepulcro; depois do almoço montava a cavalo... Não se estava mal no hotel, inglesas bonitas... Tinha algumas intimidades ilustres...
Falava delas, devagar, traçando a perna: o seu amigo o patriarca de Jerusalém, a sua velha amiga, a princesa de La Tour d’Auvergne! Mas o melhor do dia era de tarde – dizia – no Jardim das Oliveiras, vendo defronte as muralhas do templo de Salomão, ao pé a aldeia escura de Betânia, onde Marta fiava aos pés de Jesus, e mais longe, faiscando imóvel sob o sol, o mar Morto! E ali passava sentado num banco, fumando tranquilamente o seu cachimbo!
Se tinha corrido perigos?
Decerto.
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