Dizia-se dela, com os olhos em alvo: é uma estátua, é uma Vênus! Tinha ombros de modelo, duma redondeza descaída e cheia; sentia-se nos seus seios, mesmo através do corpete, o desenho rijo e harmonioso de duas belas metades de limão, a linha dos quadris rica e firme, certos quebrados vibrantes de cintura faziam voltar os olhares acesos dos homens. A cara era um pouco grosseira; as asas do nariz tinham uma dilatação carnuda; na pele, muito fina, dum trigueiro quente e corado, havia sinaizinhos desvanecidos de antigas bexigas. A sua beleza eram os olhos, duma negrura intensa, afogados num fluido, muito quebrados, com grandes pestanas.
Luísa veio para ela com os braços abertos, beijaram-se muito. E Leopoldina, sentada no sofá, enrolando devagarinho a seda clara do guarda-sol, começou a queixar-se: Tinha estado adoentada, muito secada, com tonturas. O calor matava-a. E que tinha ela feito? Achava-a mais gorda.
Como era um pouco curta de vista, para se afirmar piscava ligeiramente os olhos, descerrando os beiços gordinhos, dum vermelho cálido.
– A felicidade dá tudo, até boas cores! – disse, sorrindo.
O que a trazia era perguntar-lhe a morada da francesa que lhe fazia os chapéus. E há tanto tempo que a não via, já tinha saudades, também!
– Mas não imaginas! Que calor! Venho morta.
E deixou-se cair sobre a almofada do sofá, encalmada, com um sorriso aberto, mostrando os dentes brancos e grandes.
Luísa disse-lhe a morada da francesa, gabou-lha; era barateira e tinha bom gosto. Como a sala estava escura foi entreabrir um pouco as portadas da janela. Os estofos das cadeiras e as bambinelas eram de reps verde-escuro; o papel e o tapete com desenhos de ramagens tinham o mesmo tom, e naquela decoração sombria destacavam muito – as molduras douradas e pesadas de duas gravuras (a Medeia de Delacroix e a Mártir de Delaroche), as encadernações escarlates dos dois vastos volumes do Dante de G. Doré, e entre janelas o oval dum espelho onde se refletia um napolitano de biscuit que, na console, dançava a tarantella.
Por cima do sofá pendia o retrato da mãe de Jorge, a óleo. Estava sentada, vestida ricamente de preto, direita no seu corpete espartilhado e seco: uma das mãos, dum lívido morto, pousava nos joelhos sobrecarregada de anéis; a outra perdia-se entre as rendas muito trabalhadas dum mantelete de cetim; e aquela figura longa, macilenta, com grandes olhos carregados de negro, destacava sobre uma cortina escarlate, corrida em pregas copiosamente quebradas, deixando ver para além céus azulados e redondezas de arvoredos.
– E teu marido? – perguntou Luísa, vindo sentar-se muito junto de Leopoldina.
– Como sempre. Pouco divertido – respondeu, rindo. E, com um ar sério, a testa um pouco franzida: – Sabes que acabei com o Mendonça?
Luísa fez-se ligeiramente vermelha.
– Sim?
Leopoldina deu logo detalhes.
Era muito indiscreta, falava muito de si, das suas sensações, da sua alcova, das suas contas. Nunca tivera segredos para Luísa; e, na sua necessidade de fazer confidências, de gozar a admiração dela, descrevia-lhe os seus amantes, as opiniões deles, as maneiras de amar, os tics, a roupa, com grandes exagerações! Aquilo era sempre muito picante, cochichado ao canto dum sofá, entre risinhos: Luísa costumava escutar, toda interessada, as maçãs do rosto um pouco envergonhadas, pasmada, saboreando, com um arzinho beato. Achava tão curioso!
– Desta vez é que bem posso dizer que me enganei, minha rica filha! – exclamou Leopoldina erguendo os olhos desoladamente.
Luísa riu.
– Tu enganas-te quase sempre!
Era verdade! Era infeliz!
– Que queres tu? De cada vez imagino que é uma paixão, e de cada vez me sai uma maçada!
E picando o tapete com a ponta da sombrinha:
– Mas se um dia acerto!
– Vê se acertas – disse Luísa. – Já é tempo!
Às vezes na sua consciência achava Leopoldina “indecente”; mas tinha um fraco por ela: sempre admirara muito a beleza do seu corpo, quase lhe inspirava uma atração física. Depois desculpava-a: era tão feliz com o marido! Ia atrás da paixão, coitada! E aquela grande palavra faiscante e misteriosa, donde a felicidade escorre como a água duma taça muito cheia, satisfazia Luísa como uma justificação suficiente: quase lhe parecia uma heroína; e olhava-a com espanto como se consideram os que chegam dalguma viagem maravilhosa e difícil, de episódios excitantes. Só não gostava de certo cheiro de tabaco misturado de feno, que trazia sempre nos vestidos. Leopoldina fumava.
– E que fez ele, o Mendonça?
Leopoldina encolheu os ombros, com um grande tédio:
– Escreveu-me uma carta muito tola, que afinal bem considerado era melhor que acabasse tudo, porque não estava para se meter em camisa de onze varas! Que imbecil! Até devo ter aqui a carta.
Procurou na algibeira do vestido: tirou o lenço, uma carteirinha, chaves, uma caixinha de pó de arroz; mas encontrou apenas um programa do Price.
Falou então do circo. – Uma sensaboria. O melhor era um rapaz que trabalhava no trapézio. Lindo rapaz, benfeito, uma perfeição!
E de repente:
– Então teu primo Basílio chega?
– Assim li hoje no Diário de Notícias. Fiquei pasmada!
– Ah! outra coisa que te queria perguntar antes que me esqueça. Com que guarneceste tu aquele teu vestido de xadrezinho azul? Vou mandar fazer um assim.
Tinha-o guarnecido de azul também, um azul mais escuro. – Vem ver. Vem cá dentro.
Entraram no quarto. Luísa foi descerrar a janela, abrir o guarda-vestidos. Era um quarto pequeno, muito fresco, com cretones dum azul pálido. Tinha um tapete barato, de fundo branco, com desenhos azulados. O toucador, alto, estava entre as duas janelas, sob um dossel de renda grossa, muito ornado de frascos facetados.
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