— Nós não somos amigos? Por que deve haver palavras iradas entre nós? Munro lhe prometeu um presente pelos seus serviços, quando prestados, e eu lhe serei devedor de outro. Descanse seus membros cansados e abra sua mochila para comer alguma coisa. Temos ainda alguns momentos de folga. Não vamos perdê-los discutindo como mulheres faladeiras. Quando as senhoras descansarem, reiniciaremos a viagem.
— Os caras-pálidas se fazem de cães para suas mulheres — murmurou o índio em sua língua nativa —, e quando elas querem comer, seus guerreiros têm que pôr de lado a machadinha de guerra para lhes alimentar a indolência.
— O que foi que você disse, Raposa?
— A Raposa diz que está bem.
O índio fixou os olhos agudos no rosto franco de Heyward, mas, encontrando-lhe o olhar, desviou-os rapidamente, sentou-se devagar no chão, tirou da mochila os restos de alguma antiga refeição e começou a comer, embora não sem antes passar uma lenta e cautelosa revista em volta.
— Assim está bom — disse Heyward —, e a Raposa terá forças e vista para encontrar a trilha pela manhã. — Interrompeu-se porque sons como de gravetos secos que se partiam e farfalhar de folhas surgiram nas moitas vizinhas, mas, controlando-se, continuou: — Temos que partir antes que o sol nasça, ou Montcalm pode aparecer em nosso caminho e nos isolar da fortaleza.
A mão de Magua desceu da boca para o lado e, embora os olhos estivessem fixos no chão, a cabeça virou para um lado, as narinas dilatadas, enquanto as orelhas pareciam ainda mais empinadas do que o habitual, dando-lhe a aparência de uma estátua esculpida para representar a mais intensa atenção.
Heyward, que lhe observava os movimentos com olho vigilante, soltou descuidadamente um dos pés do estribo, enquanto levava a mão para a aba de couro de urso do coldre da arma. Qualquer esforço para localizar o ponto mais visado pelo mensageiro foi inteiramente frustrado pelos movimentos rápidos de seus olhos, que aparentemente não pousavam nem por um instante em qualquer objeto e que, ao mesmo tempo, dificilmente se poderia dizer que se moviam. Enquanto ele hesitava sobre o que fazer em seguida, Raposa levantou-se cautelosamente, embora com um movimento tão lento e discreto que nem um único ruído foi produzido pela mudança de posição. Heyward achou que lhe cabia agir nesse momento. Jogando a perna sobre a sela, desmontou com a determinação de avançar e agarrar o traiçoeiro companheiro de viagem, confiando o resultado à sua própria masculinidade. A fim de impedir um alarme evitável, no entanto, conservou o ar de calma e amizade.
— Raposa Astuta não comeu — disse, usando o nome que achava que mais lisonjeava a vaidade do índio. — Seu milho não foi bem torrado e parece seco demais. Deixe-me ver. Talvez alguma coisa possa ser encontrada entre minhas próprias provisões que lhe despertem o apetite.
Magua estendeu a mochila para receber o oferecimento. Deixou mesmo que suas mãos se encontrassem, sem revelar a menor emoção ou mudar a atitude de atenção. Mas quando sentiu os dedos de Heyward movendo-se suavemente ao longo do braço nu, atacou o braço do jovem, e soltando um grito agudo enquanto passava por debaixo dele, com um único salto mergulhou na mata espessa do outro lado. No instante seguinte, a forma de Chingachgook surgiu nas moitas, parecendo um espectro em sua pintura, e cruzou a trilha em veloz perseguição. Logo em seguida foi ouvido o grito de Uncas, ocasião em que a floresta foi iluminada por um súbito relâmpago, seguido do estalo seco do fuzil do caçador.
Nota
10 Esta cena se passou no paralelo de 42° de latitude, onde o pôr do sol nunca é demorado.
Capítulo V
“Numa noite como esta
Tisbe, assustada, tropeçou no véu;
E viu a sombra do leão, antes de ver a própria fera.”
O Mercador de Veneza
O inesperado da fuga do guia e os gritos enfurecidos de seus perseguidores deixaram Heyward paralisado de surpresa por alguns momentos. Em seguida, lembrando-se da importância de capturar o fugitivo, afastou as moitas circundantes e avançou impetuosamente para ajudar na caçada. Antes de ter percorrido uns cem metros, porém, encontrou os três mateiros, que voltavam da perseguição infrutífera.
— Por que desanimaram tão cedo? — perguntou o oficial. — O patife deve estar escondido atrás de algumas dessas árvores e ainda pode ser capturado. Não estaremos seguros com ele à solta.
— O senhor usaria uma nuvem para caçar o vento? — respondeu o desapontado batedor. — Ouvi o demônio passando de leve sobre as folhas secas, como se fosse uma serpente negra, e, tendo-o vislumbrado junto daquele grande pinheiro, atirei como se tivesse sido no faro. Mas não acertei. Ainda assim, em matéria de pontaria, se outra pessoa que não eu tivesse puxado o gatilho, eu consideraria um bom tiro. E pode-se dizer que tenho experiência nesses assuntos e que devo saber do que falo. Olhe para essa sumagreira. As folhas dela estão vermelhas, embora todo mundo saiba que o fruto está nas flores amarelas no mês de julho.
— É o sangue de Raposa Astuta! Ele está ferido e ainda pode tombar por aí!
— Não, não — retrucou o batedor, refutando decididamente essa opinião. — Acertei de raspão um dos membros dele, talvez, mas a criatura ainda saltou mais longe por causa disso. Uma bala de fuzil atua sobre um animal em fuga, quando o toca de raspão, mais ou menos da mesma maneira que a espora no cavalo, isto é, acelera-lhe o movimento e põe vida na carne, em vez de arrancá-la.
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