Então quer dizer que você está apaixonada?”
“Claro que não”, indignei-me. “Eu o conheço desde criança.”
“Desesperadamente, hein? Bom, posso dar um jeito nisso pra você, e aí você usa toda a sua influência pra me ajudar. Quero uma unidade só pra mim.”
Fechei os olhos e deslizei devagar rumo ao sono. Acordei com a aeromoça me cobrindo com uma manta.
“Falta pouco”, ela disse.
Pela janela pude ver, à luz do pôr do sol lá fora, que estávamos em território mais verde.
“Acabei de ouvir uma coisa engraçada”, a aeromoça puxou conversa, “lá na cabine — aquele sr. Smith — ou sr. Stahr — não lembro de ter visto o nome dele alguma vez…”
“Nunca aparece nos filmes”, falei.
“Ah. Bem, ele estava perguntando aos pilotos uma porção de coisas sobre voar — enfim, está interessado mesmo nisso, você sabia?”
“Sabia.”
“Enfim, um dos pilotos me disse que podia apostar que em dez minutos ensinava o sr. Stahr a conduzir um voo solo. O homem tem uma mentalidade e tanto, foi o que ele me disse.”
Eu estava ficando impaciente.
“E o que tem de tão engraçado nisso?”
“Bem, um dos pilotos perguntou ao sr. Smith se gostava do ramo em que trabalha, e ele falou: ‘Claro. Claro que gosto. É bom ser o único doido normal num bando de doidos varridos’.”
A aeromoça dobrou o volume da risada — e eu estava a ponto de cuspir nela.
“Enfim, chamar aquele pessoal todo de bando de doidos. Enfim, doidos varridos.” Parou de rir, súbita e inesperadamente, e seu rosto assumiu um ar grave enquanto ela se punha de pé. “Bem, tenho de ir terminar de atender o pessoal.”
“Tchau.”
Stahr, era evidente, havia dado intimidade suficiente aos pilotos para lhes permitir que subissem um pouquinho ao patamar dele. Anos mais tarde, viajei com um desses mesmos comandantes, e ele me contou uma coisa que Stahr dissera.
Stahr olhava para as montanhas lá embaixo.
“Imagine que você é um chefe de ferrovia”, falou. “Você precisa mandar um trem pra algum lugar ali no meio. Bom, chega o relatório do seu fiscal de trilhos e você descobre um monte de falhas, três, quatro, uma dúzia delas, e nenhuma rota é melhor que a outra. Você tem de decidir… com base em quê? Não dá pra sair testando qual é o melhor caminho — é escolher um e ir por ele. É o que você acaba fazendo.”
O piloto achou que tinha perdido alguma coisa.
“E o que isso quer dizer?”
“Que a gente escolhe um caminho sem ter razão alguma — porque aquela montanha é rosa, ou porque o mapa é mais bonitinho. Entende?”
O piloto tomou aquilo como um conselho muito valioso. Mas duvidou que algum dia estaria em situação de aplicá-lo.
“O que eu queria saber”, ele me disse, pesaroso, “era como foi que ele chegou a se tornar o sr. Stahr.”
Acho que Stahr jamais poderia ter respondido à pergunta; o embrião ainda não tem o recurso da memória. Mas eu, sim, consigo responder em parte. Ainda muito jovem, com asas fortes, ele havia voado bem alto, de onde pôde ver. Lá de cima avistou todos os reinos com o tipo de olho com que se pode mirar diretamente o Sol. Batendo as asas tenazmente — freneticamente, afinal — e sem parar, permaneceu no ar por mais tempo do que a maioria de nós, e então, lembrando tudo que vira de como são as coisas daqueles píncaros, aos poucos se acomodara de volta à terra.
Motores desligados, nossos cinco sentidos começaram a se reajustar para o pouso. À frente e à esquerda, avistava-se a fileira de luzes da Base Naval de Long Beach, à direita, o borrão cintilante de Santa Monica. A lua da Califórnia apareceu, enorme e alaranjada, sobre o Pacífico. Fosse como fosse que eu me sentisse em relação a essas coisas — e elas me diziam que estava em casa, afinal de contas —, sei que o sentimento de Stahr devia ser muito maior. Aquelas eram as coisas que eu primeiro vira ao abrir os olhos para o mundo, como as ovelhas no terreno dos fundos do estúdio Laemmle; mas havia sido ali o lugar em que ele pousara de retorno à terra, depois daquele voo luminoso em que enxergou para onde íamos, e como éramos fazendo o que fazíamos, e quanto isso importava.
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