Pode-se dizer que foi aí que um vento perigoso o apanhou, mas não penso assim. Prefiro achar que, numa “tomada panorâmica”, ele percebeu uma nova maneira de avaliar nossas esperanças espasmódicas e delicadas trapaças e mágoas incômodas, e que por escolha própria veio para estar conosco até o fim. Como o avião que descia no aeroporto de Glendale, adentrando a treva quente.

2

Eram nove horas de uma noite de julho, e alguns figurantes ainda se demoravam na lanchonete em frente ao estúdio — ao estacionar, pude vê-los debruçados sobre as máquinas de jogo. O “Velho” Johnny Swanson estava parado na esquina em seu traje meio caubói, o olhar perdido na lua. Algum dia fora um dos grandes do cinema, como agora Tom Mix ou Bill Hart — hoje, era triste falar com ele, de modo que me apressei a atravessar a rua e entrar pelo portão principal.

Um estúdio jamais é um ambiente totalmente quieto. Sempre tem alguma equipe de técnicos do turno da noite nos laboratórios e nas salas de dublagem, o pessoal da manutenção dando um pulo no refeitório. Mas os ruídos são todos diferentes — o som abafado de pneus, o tranquilo ronronar de um motor em giro inercial, o agudo nu de uma soprano num microfone no meio da noite. Virando uma esquina, topei com um homem em botas de borracha lavando um carro sob uma maravilhosa luz branca — uma fonte em meio às sombras mortas daquela indústria. Ao ver o sr. Marcus sendo amparado para entrar em seu carro em frente ao prédio da administração, diminuí o passo, pois ele demorava um bocado para dizer o que quer que fosse, até mesmo um boa-noite — e, enquanto esperava, me dei conta de que a soprano estava cantando sem parar, e repetidamente, Come, come, I love you only; lembro disso porque ela prosseguiu com o mesmo verso durante o terremoto. Faltavam ainda cinco minutos para começar.

Os escritórios do papai estavam localizados no prédio antigo, com suas sacadas compridas e corrimões de ferro cuja aparência era, incorrigivelmente, a de cordas bambas. Papai ficava no segundo piso, Stahr de um lado e o sr. Marcus do outro — naquela noite havia luzes acesas ao longo de toda a sequência de escritórios. Eu ia com um friozinho na barriga pela proximidade com Stahr, mas já controlava bem a sensação naquele momento — só o vira uma vez naquele mês desde que estava em casa.

Muita coisa havia de peculiar no escritório do papai, mas vou resumir. Do lado de fora, três secretárias com cara inescrutável, as quais, até onde minha memória alcançava, desde sempre estiveram ali, feito bruxas, Birdy Peters, Maude não-sei-de-quê e Rosemary Schmiel, a decana do trio — não sei se era esse o nome, mas debaixo da sua escrivaninha ficava o abre-te-sésamo que dava acesso à sala do trono do papai. Todas as três eram capitalistas ferrenhas, e Birdy tinha inventado a regra segundo a qual, se datilógrafas fossem vistas fazendo as refeições juntas mais de uma vez na semana, mereceriam advertência do alto escalão. Naquela época os estúdios temiam ser controlados pelas massas.

Entrei no escritório. Hoje em dia qualquer executivo tem imensas salas de visita, mas a do meu pai foi a primeira. Também foi a primeira a ter vidros espelhados nos janelões altos, e ouvi falar de um alçapão no assoalho que engoliria visitantes desagradáveis, lançando-os numa masmorra, mas acredito que fosse invenção. Havia um grande quadro de Will Rodgers exposto ostensivamente e destinado, acho, a sugerir um parentesco essencial entre papai e o são Francisco de Hollywood; havia uma foto autografada de Minna Davis, a falecida mulher de Stahr, e de outras celebridades do estúdio, além de grandes desenhos a giz meus e da mamãe. Naquela noite, os janelões estavam abertos, e a lua, enorme, em tons dourado e róseo e envolta em névoa, entrava inevitável por uma delas. Papai, Jacques La Borwitz e Rosemary Schmiel estavam ao fundo, reunidos em torno de uma grande mesa circular.

Que aparência tinha o papai? Não seria capaz de descrevê-lo, exceto daquela vez em que o encontrei em Nova York sem estar esperando; percebi então aquele homem corpulento de meia-idade, parecendo um pouco envergonhado de si mesmo, e desejei que saísse dali — e foi aí que vi que era o papai. Depois fiquei chocada com essa minha impressão. Papai consegue ser bem magnético — com seu queixo duro e seu sorriso de irlandês.

Quanto a Jacques La Borwitz, prefiro poupá-los. Digo apenas que era um produtor-assistente, tipo subalterno, e basta. Sempre me espantava pensando de onde Stahr desenterrava aqueles cadáveres mentais, ou por que se obrigava a suportar uns tipos assim — e, especialmente, como é que conseguia torná-los úteis de alguma forma —, algo que espantaria qualquer recém-chegado da Costa Leste que topasse com eles. Sem dúvida que Jacques La Borwitz tinha lá seu interesse, mas protozoários submicroscópicos ou um cão uivando por uma cadela e um osso também têm. Jacques La… meu Deus!

Pela expressão no rosto deles, soube com certeza que falavam de Stahr. Ele tinha dado uma ordem qualquer, ou proibido alguma coisa, ou desafiado o papai, ou arruinado um dos filmes de La Borwitz, ou feito algo catastrófico do tipo, e ali estavam eles, em protesto noturno, uma comunidade revoltada e impotente. Rosemary Schmiel, bloco de anotações em punho, parecia pronta a pôr no papel o abatimento dos três.

“Me mandaram te levar pra casa vivo ou morto”, falei para o papai.