“Tem um monte de presentes de aniversário apodrecendo nos pacotes!”
“Aniversário!”, berrou Jacques, numa profusão de desculpas. “Quantos anos? Eu não sabia.”
“Quarenta e três”, respondeu papai, indubitável.
Era mais velho — quatro anos —, e Jacques sabia; vi que anotava aquilo para usar em alguma ocasião. Por estas bandas, cadernos de notas são carregados abertos. Pode-se ver o que é anotado sem que se precise de leitura labial, e Rosemary Schmiel, por emulação, marcou alguma coisa também no seu. Enquanto apagava uma anotação, a terra tremeu debaixo de nós.
Não sentimos o tremor em cheio, como em Long Beach, onde os pisos de cima das lojas foram lançados às ruas e hoteizinhos levados pelo mar — mas, por um minuto, nossas entranhas e as da Terra eram uma coisa só, como num pesadelo em que tentássemos religar nosso cordão umbilical e voltar ao útero da criação.
A foto da mamãe caiu da parede, revelando um pequeno cofre — Rosemary e eu nos enganchamos freneticamente uma à outra para uma estranha valsa, dançada aos gritos pela sala. Jacques desmaiou, ou ao menos desapareceu, enquanto o papai se agarrava à escrivaninha e berrava: “Você está bem?”. Pela janela, lá fora, a cantora chegou ao clímax de “I love you only”, parou por um momento e então, juro, começou de novo. Ou talvez tenham ligado o gravador para ela se ouvir.
A sala restou imóvel, trepidando um pouquinho. Alcançamos a porta, Jacques subitamente conosco outra vez, ressurgido, e cambaleamos tontos pela antessala até a sacada de ferro. Quase todas as luzes tinham se apagado e, aqui e acolá, ouvíamos gritos e gente chamando. Permanecemos um instante ali, esperando por um segundo tremor — então, como que num impulso coletivo, seguimos até o vestíbulo do escritório de Stahr, e dali para dentro.
Era grande, mas não tanto quanto o do papai. Stahr estava sentado na lateral de seu sofá e esfregava os olhos. No momento do terremoto, dormia, e ainda não tinha certeza se não sonhara aquilo. Quando o convencemos de que não, achou tudo muito engraçado — até que os telefones começaram a tocar. Observei-o com a maior discrição possível. Tinha a aparência pálida de cansaço, atento ao telefone e ao ditafone; mas, à medida que chegavam os relatos, recobrou o brilho nos olhos.
“Alguns canos devem ter estourado”, falou, dirigindo-se ao papai, “estão indo dar uma olhada lá nos fundos.”
“O Gray está filmando na Aldeia Francesa”, falou papai.
“O entorno da Estação alagou também, e ainda a Selva e a Esquina. Caramba — parece que ninguém se feriu.” De passagem, ele apertou minha mão, solene: “Por onde você andou, Cecilia?”.
“Você vai até lá, Monroe?”, perguntou papai.
“Quando tiver as informações todas: uma das linhas de energia caiu também — avisei o Robinson.”
Me fez sentar com ele no sofá e contar sobre o tremor novamente.
“Você parece cansado”, falei, graciosa e maternal.
“Pois é”, concordou ele, “não tenho pra onde ir à noite, então não paro de trabalhar.”
“Vou programar umas saídas pra você.”
“Costumava jogar pôquer com um pessoal”, ele disse, pensativo, “quando era solteiro. Mas os rapazes todos se acabaram na bebida.”
A srta. Doolan, secretária dele, entrou com más notícias fresquinhas.
“O Robby vai cuidar de tudo quando chegar”, assegurou Stahr ao meu pai. Virou-se para mim. “Esse cara é o seguinte — o Robinson. Resolve qualquer encrenca — consertava linhas telefônicas debaixo de tempestades de neve em Minnesota —, nada é empecilho para o homem. Já, já ele chega — você vai gostar do Robby.”
Falou isso como se a vida toda tivesse tido a intenção de nos apresentar, e como se o terremoto em si tivesse sido pensado só para isso.
“Pois é, você vai gostar do Robby”, repetiu. “Quando volta pra faculdade?”
“Acabei de chegar.”
“Vai ficar o verão todo?”
“Desculpe”, respondi. “Volto na primeira oportunidade.”
Estava confusa. Não deixou de me passar pela cabeça que ele talvez tivesse alguma intenção em relação a mim, mas, se fosse o caso, ainda num estágio muito inicial — eu era meramente “um bom ativo”. E a ideia não me parecia muito atraente àquela altura — como casar com um médico. Raramente ele saía do estúdio antes das onze.
“Quanto tempo falta”, ele perguntou ao meu pai, “pra ela se formar na faculdade? Era o que eu estava tentando dizer.”
E acho que o que eu estava ansiosa para dizer, alto e bom som, era que não ia voltar coisa nenhuma, que já tinha estudado o suficiente — foi então que apareceu o incrível Robinson. Era um rapaz ruivo de pernas tortas e pronto para o que desse e viesse.
“Este é o Robby, Cecilia”, disse Stahr. “Vem cá, Robby.”
Pois fiquei conhecendo Robby.
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