Não posso dizer que parecia o destino — mas era. Porque foi Robby quem, mais tarde, me contou a história de como Stahr encontrou o amor naquela noite.
*
À luz da lua, os doze mil metros quadrados do terreno dos fundos eram uma terra encantada — não porque as locações pareciam, de verdade, selvas africanas, chatôs franceses, escunas no ancoradouro ou a Broadway à noite, mas por se assemelharem a surrados livros infantis ilustrados, feito fragmentos de histórias bailando em torno de uma fogueira. Nunca vivi numa casa com sótão, mas um terreno como aquele deve ser parecido, e à noite, claro, como que por encanto e numa visão distorcida, tudo fica real.
Quando Stahr e Robby chegaram, fachos de luz já iluminavam os pontos mais perigosos da inundação.
“Vamos drenar isso aí para o banhado da rua 36”, falou Robby em seguida. “É uma área da prefeitura, mas o que aconteceu aqui foi ato divino, não foi? Me digam — olhem só aquilo lá!”
Sobre o topo da cabeça gigante de uma deusa Shiva, duas mulheres boiavam correnteza abaixo de um rio que se formara. A estátua tinha se desgarrado de um cenário simulando Burma e ziguezagueava impávida, abrindo caminho e às vezes parando, aqui e ali, em solavancos e desvios à medida que achava espaços em meio aos outros destroços da inundação. As duas refugiadas tinham encontrado abrigo num tufo encaracolado sobre a testa nua da estátua e pareciam, à primeira vista, visitantes fazendo um interessante tour no local da enchente.
“Olha só aquilo, Monroe!”, disse Robby. “Olha só aquelas senhoras!”
Arrastando as pernas para se locomoverem em meio àquele pântano recém-formado, elas conseguiram chegar a uma das margens do curso d’água. Agora dava para vê-las, um pouco assustadas, mas animadas com a perspectiva de um resgate.
“Devíamos deixá-las ir embora pelo cano de escoamento”, falou Robby, um cavalheiro, “mas DeMille precisa daquela cabeça pra semana que vem.”
Ele não faria mal a uma mosca, porém, e naquele momento, com água pela cintura, tentava resgatar as mulheres com uma vara, mas tudo que conseguia era girá-la em círculos nauseantes. Chegaram reforços, e rapidamente já se comentava como era bonita uma das duas, e em seguida que eram gente importante. Mas não passavam de visitantes comuns, e Robby estava só esperando que as coisas ficassem sob controle para lhes passar uma descompostura.
“Ponham essa cabeça de volta aí!”, gritou para elas. “Estão pensando que é um suvenir?”
Uma das mulheres deslizou devagar pela bochecha da estátua, e Robby a apanhou e colocou em terra firme; a outra moça hesitou um pouco, mas seguiu a primeira. Robby virou-se para Stahr em busca de um veredicto.
“O que fazemos com elas, chefe?”
Stahr não respondeu. A não mais do que um metro e pouco de distância dele, o rosto de sua falecida esposa lhe sorria debilmente, idêntico até mesmo na expressão. Aquele metro e pouco sob o luar, e ali estavam os olhos que ele conhecia e o encaravam, a mecha sobre a fronte familiar balançando de leve na brisa; o sorriso se mantinha, um pouquinho alterado mas ainda reconhecível; os lábios se entreabriram — os mesmos. Um medo horrível o tomou, e ele queria gritar bem alto. Ela voltava da câmara mortuária, junto com o deslizar abafado da limusine fúnebre, as flores cobrindo o caixão já perdendo suas pétalas, voltava da escuridão — e ressurgia ali, viva e radiante. O rio passou por ele num turbilhão, os enormes holofotes piscaram súbitos — e ele, então, ouviu uma voz que não era a de Minna.
“Desculpem”, disse a voz. “A gente entrou atrás de um caminhão por um dos portões.”
O incidente havia reunido uma pequena multidão — eletricistas, motoristas de caminhão, técnicos em geral — e Robby passou a fustigá-los feito um cão pastor.
“… peguem as bombas grandes dos tanques do estúdio 4… passem um cabo em torno dessa cabeça, depois icem com umas ripas de dois por quatro… drenem primeiro a água da Selva, pelo amor de Deus… esse cano aí, podem largar… é tudo plástico esse negócio…”
Stahr ficou parado observando as duas moças, que seguiam um policial em direção ao portão de saída. Então deu um pequeno passo, experimentando para ver se a fraqueza nos joelhos tinha passado. Um trator barulhento foi chegando aos solavancos pelo lamaçal, e mais o fluxo de homens que, ao passar perto dele, sorriam, falavam: “Olá, Monroe… Olá, sr. Stahr… noite úmida, sr. Stahr… Monroe… Monroe… Stahr… Stahr… Stahr”.
Ele respondia e acenava de volta à medida que o pessoal ia passando na escuridão, acho que parecendo um pouco o Imperador e sua Velha Guarda. Um mundo inexistente, mas com seus heróis, e Stahr era o herói. A maioria daqueles homens estava ali fazia bastante tempo — dos primórdios à grande mudança, quando o som foi introduzido, chegando aos três anos de Depressão, e ele cuidara para que não sofressem. Antigas lealdades agora eram abaladas, revelavam-se pés de barro por todo lado; mas ele ainda era o homem forte daquela gente, o último dos príncipes. E era saudado pelos que ali passavam, uma espécie de contida celebração do herói.
3
Da noite em que chegara em casa até o terremoto, eu havia feito muitas observações.
Sobre o papai, por exemplo. Eu amava o papai — uma espécie de amor que, num gráfico, faz muitas curvas de queda —, mas comecei a ver que sua firme determinação não o tornava um homem aceitável. A maior parte do que conquistara era fruto de astúcia. Com sorte e sagacidade, tinha adquirido — junto com o jovem Stahr — um quarto do negócio promissor que era aquele circo. Na vida, empenhara-se nisso — tudo o mais era um instinto para a espera.
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