Mas talvez, naquela ocasião, eu fosse apenas uma menininha, de modo que não me ofendi por ele não ter me reconhecido.
A aeromoça — alta, bonita, uma morena radiante, tipo aparentemente muito apreciado — me perguntou se podia preparar meu lugar para que eu dormisse.
“… e, querida, você quer uma aspirina?” Ela se debruçou na lateral da poltrona, precariamente apoiada enquanto chacoalhava de um lado para o outro em meio à tempestade. “… ou um nembutal?”
“Não.”
“Estava tão ocupada com os outros que nem tive tempo de perguntar.” Ela sentou ao meu lado e afivelou o cinto de ambas. “Quer um chiclete?”
A pergunta me lembrou que eu precisava me livrar daquele que estava na minha boca, já sem gosto, havia horas. Embrulhei-o num pedaço de revista, que depositei no cinzeiro automático.
“Sempre sei que uma pessoa é educada”, disse a aeromoça, satisfeita, “quando embrulha o chiclete num papel antes de colocar no cinzeiro.”
Ali ficamos, durante um tempo, à meia-luz na cabine que balançava. Parecia um pouco o ambiente de um restaurante chique no tempo morto entre almoço e jantar. Íamos todos nos deixando ficar — e não era algo deliberado, pelo menos não exatamente. Acho que até mesmo a aeromoça tinha de estar o tempo todo lembrando a si mesma por que estava ali.
Conversamos sobre uma jovem atriz que eu conhecia e com quem ela estivera num voo para a Costa Oeste dois anos antes. Foi na pior época da Depressão, e a jovem atriz não tirava os olhos da janela, e olhava para fora de um jeito tão determinado que a aeromoça temeu que estivesse pensando em pular. Mas parece que o que temia não era a pobreza, e sim a revolução.
“Sei o que nós, minha mãe e eu, vamos fazer”, ela confidenciou à aeromoça. “Vamos nos refugiar no Parque Nacional de Yellowstone e lá vamos viver uma vida simples até essa coisa toda passar. Aí a gente volta. Eles não matam artistas… sabia disso?”
A história me agradou. Evocava um quadro bonito, com a atriz e sua mãe sendo alimentadas por ursos bonzinhos, que lhes traziam mel, e por corças dóceis que, fornecendo-lhes leite extra tirado de suas mamães, ficariam aconchegadas junto às duas para servir-lhes de travesseiros durante a noite. Eu, por minha vez, contei à aeromoça sobre o advogado e o diretor de cinema que, naqueles tempos brabos, apareceram certa noite para falar ao papai de seus planos. O advogado tinha um barco escondido no rio Sacramento para o caso de a revolta dos veteranos de guerra chegar a Washington, e navegaria rio acima por alguns meses para então voltar, “porque sempre precisam de advogados depois das revoltas, para resolver a parte legal”.
O tom do diretor era mais derrotista. Mantinha a postos um velho terno, camisa e sapatos — não chegou a dizer se eram próprios ou se os havia arranjado no estúdio — e com eles ia Desaparecer na Multidão. Lembro de papai ter dito: “Mas vão olhar as suas mãos! Vão saber que você não faz trabalho braçal há anos. E vão pedir sua carteira do sindicato”. E lembro de o diretor ter ficado com uma cara péssima, muito soturno enquanto comia sua sobremesa, e do quanto eles me soavam engraçados e patéticos.
“Seu pai é ator, srta. Brady?”, quis saber a aeromoça. “Tenho certeza de que já ouvi esse sobrenome.”
Quando o ouviram, ambos os homens nas poltronas do outro lado do corredor ergueram a vista. De soslaio — aquele olhar de Hollywood, que parece sempre lançado por sobre o ombro. Então o rapaz pálido e atarracado soltou o cinto de segurança, levantou e parou no corredor ao nosso lado.
“Você é Cecilia Brady?”, perguntou, ostensivo, como se eu estivesse escondendo aquilo dele. “Estava mesmo te reconhecendo. Sou Wylie White.”
Nem precisava ter dito — no mesmo momento, uma outra voz falou: “Toma cuidado onde pisa, Wylie!”, e um segundo homem passou rente a ele pelo corredor em direção à cabine de comando. Wylie White se sobressaltou e, um pouco atrasado, ainda gritou ao outro, desafiando:
“Só aceito ordens do piloto.”
Reconheci o tipo de deboche tão comum entre os poderosos de Hollywood e seus satélites.
A aeromoça o repreendeu:
“Não fale tão alto, por favor. Alguns passageiros estão dormindo.”
Percebi, então, que o passageiro do lado de lá do corredor, o judeu de meia-idade, também estava de pé e olhava, de um modo não tão lascivo, mas sem nenhum pudor, na direção do homem que acabara de passar. Ou melhor, para as costas deste, que fez um gesto lateral com a mão, uma espécie de aceno de despedida, e desapareceu da vista.
Perguntei à aeromoça: “Ele é o copiloto?”.
Ela estava desafivelando o cinto, prestes a me abandonar à mercê de Wylie White.
“Não. Aquele é o sr. Smith.
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