O Velho da Horta

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Universidade da Amazônia

O Velho da Horta

de Gil Vicente

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O Velho da Horta

de Gil Vicente

Esta seguinte farsa é o seu argumento que um homem honrado e muito rico,

já velho, tinha uma horta: e andando uma manhã por ela espairecendo, sendo o seu

hortelão fora, veio uma moça de muito bom parecer buscar hortaliça, e o velho em

tanta maneira se enamorou dela que, por via de uma alcoviteira, gastou toda a sua

fazenda. A alcoviteira foi açoitada, e a moça casou honradamente. Entra logo o

velho rezando pela horta. Foi representada ao mui sereníssimo rei D. Manuel, o

primeiro desse nome. Era do Senhor de M.D.XII.

Velho — Pater noster criador, Qui es in coelis, poderoso, Santificetur, Senhor,

nomen tuum vencedor, nos céu e terra piedoso. Adveniat a tua graça, regnum tuum

sem mais guerra; voluntas tua se faça sicut in coelo et in terra. Panem nostrum, que

comemos, cotidianum teu é; escusá-lo não podemos; inda que o não mereceremos

tu da nobis. Senhor, debita nossos errores, sicut et nos, por teu amor, dimittius

qualquer error, aos nosso devedores. Et ne nos, Deus, te pedimos, inducas, por

nenhum modo, in tentationem caímos porque fracos nos sentimos formados de triste

lodo. Sed libera nossa fraqueza, nos a malo nesta vida; Amen, por tua grandeza, e

nos livre tua alteza da tristeza sem medida.

Entra a MOÇA na horta e diz o VELHO:

Velho — Senhora, benza-vos Deus,

Moça — Deus vos mantenha, senhor.

Velho — Onde se criou tal flor? Eu diria que nos céus.

Moça — Mas no chão.

Velho — Pois damas se acharão que não são vosso sapato!

Moça — Ai! Como isso é tão vão, e como as lisonjas são de barato!

Velho — Que buscais vós cá, donzela, senhora, meu coração?

Moça — Vinha ao vosso hortelão, por cheiros para a panela.

Velho — E a isso vinde vós, meu paraíso. Minha senhora, e não a aí?

Moça — Vistes vós! Segundo isso, nenhum velho não tem siso natural.

Velho — Ó meus olhinhos garridos, mina rosa, meu arminho!

Moça — Onde é vosso ratinho? Não tem os cheiros colhidos?

Velho — Tão depressa vinde vós, minha condensa, meu amor, meu coração!

Moça — Jesus! Jesus! Que coisa é essa? E que prática tão avessa da razão!

Velho — Falai, falai doutra maneira! Mandai-me dar a hortaliça. Grão fogo de amor

me atiça, ó minha alma verdadeira!

Moça — E essa tosse? Amores de sobreposse serão os da vossa idade; o tempo

vos tirou a posse.

Velho — Mas amo que se moço fosse com a metade.

Moça — E qual será a desastrada que atende vosso amor?

Velho — Oh minha alma e minha dor, quem vos tivesse furtada!

Moça — Que prazer! Quem vos isso ouvir dizer cuidará que estais vivo, ou que estai

para viver!

Velho — Vivo não no quero ser, mas cativo!

Moça

— Vossa alma não é lembrada que vos despede esta vida?

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Velho — Vós sois minha despedida, minha morte antecipada.

Moça — Que galante! Que rosa! Que diamante! Que preciosa perla fina!

Velho — Oh fortuna triunfante! Quem meteu um velho amante com menina! O maior

risco da vida e mais perigoso é amar, que morrer é acabar e amor não tem saída, e

pois penado, ainda que amado, vive qualquer amador; que fará o desamado, e

sendo desesperado de favor?

Moça — Ora, dá-lhe lá favores! Velhice, como te enganas!

Velho — Essas palavras ufanas acendem mais os amores.

Moça — Bom homem, estais às escuras! Não vos vedes como estais?

Velho — Vós me cegais com tristuras, mas vejo as desaventuras que me dais.

Moça — Não vedes que sois já morto e andais contra a natura?

Velho — Oh flor da mor formosura! Quem vos trouxe a este meu horto? Ai de mim!

Porque, logo que vos vi, cegou minha alma, e a vida está tão fora de si que,

partindo-vos daqui, é partida.

Moça —Já perto sois de morrer. Donde nasce esta sandice que, quanto mais na

velhice, amais os velhos viver? E mais querida, quando estais mais de partida, é a

vida que deixais?

Velho — Tanto sois mais homicida, que, quando amo mais a vida, ma tirais. Porque

meu tempo d’agora vai vinte anos dos passados; pois os moços namorados a

mocidade os escora. Mas um velho, em idade de conselho, de menina namorado...