Mas não foram tanto essas evidências de grandeza que me intrigaram, nem mesmo o contraste que apresentavam com os atuais despovoamento e decadência daquela enorme casa. Era, na verdade, a parábola da vida familiar que li nessa sucessão de rostos e corpos bem esculpidos. Nunca antes eu havia percebido tão claramente o milagre da continuidade da raça, a criação e a recriação, a tessitura, a mudança e a transmissão dos elementos de sangue. Que uma criança deveria nascer de sua mãe, que deveria crescer, se vestir (não sabemos como) de humanidade, assumir a aparência herdada, ter os trejeitos de um dos ascendentes e gesticular como outro são milagres que nos são assimilados por repetição. Mas, em cada olhar, no porte e nos traços comuns a todas essas gerações retratadas nas paredes da residência, o milagre se revelou e se colocou diante de mim. E oportunamente em meu caminho, um espelho antigo me fez parar e olhar meus próprios traços por um tempo, buscando em cada mão os filamentos de descendência que me atam à trama da minha família.
Finalmente, no curso dessas investigações, abri a porta de um aposento que carregava marcas de habitação. Era de largas proporções e virado para o norte, onde as montanhas tinham perfis mais acentuados. As brasas de uma fogueira ardiam lentamente, e a fumaça subia pela lareira, para perto de onde uma cadeira havia sido arrastada. Mas, ainda assim, o aspecto do ambiente parecia místico e austero; a cadeira não era estofada, não havia nada no chão nem nas paredes além dos livros que repousavam aqui e ali, em certa confusão, não havia qualquer instrumento nem de trabalho nem de lazer. Ver tantos livros numa casa com essa família muito me surpreendeu, e comecei, com grande pressa e um certo medo de ser interrompido, a verificá-los um a um para descobrir seu conteúdo. Eram de todos os tipos, devocionais, históricos e científicos, mas em sua maioria eram muito antigos e em latim. Em alguns se podiam ver anotações, outros haviam sido rasgados e colocados de lado, como num sinal de petulância ou desaprovação. Finalmente, cruzei o aposento vazio e espiei alguns papéis escritos a lápis que estavam em cima de uma mesa perto da janela. Uma curiosidade impensada me levou a pegar um deles. Ostentava uma cópia de versos, muito grosseiramente metrificados, em espanhol castiço, e que eu poderia reproduzir mais ou menos assim:
Chegou o prazer entre sofrimento e vergonha
O luto, com uma guirlanda de lírios
O prazer mostrava um belo sol
Jesu meu, como é doce seu brilho
Luto com as mãos gastas apontando,
Querido Jesu, para ti!
Vergonha e confusão ao mesmo tempo me tomaram e, depositando o papel, bati imediatamente em retirada. Nem Felipe nem sua mãe poderiam ter lido os livros ou escrito esses grosseiros, mas emocionados, versos. Estava claro que eu havia pisado com pés profanos o quarto da filha da casa. Deus sabe o quão profundamente meu próprio coração me puniu por essa indiscrição. A ideia de que, mesmo secretamente, eu tenha entrado na intimidade de uma garota situada em tal estranhamento e o medo que ela pudesse de alguma forma vir a saber disso foram opressores como a culpa. Culpei-me, sim, pelas suspeitas da noite anterior, admirado de não ter atribuído aqueles gritos chocantes a alguém que agora concebo como uma santa, espectro de conduta desperdiçada na decomposição, atada nas práticas de uma devoção mecânica e vivendo em grande isolamento de alma com seus parentes incompatíveis. À medida que me debruçava sobre a balaustrada do alpendre e olhava para o belo cercado de romãs e para a mulher sonolenta e alegremente vestida que havia acabado de se espreguiçar e umedecer os lábios delicadamente de uma forma muito sensual, minha mente comparava alternadamente a cena com o quarto frio, voltado para as montanhas, onde vivia a filha.
Naquela mesma tarde, enquanto estava sentado em meu mirante no morro, vi o padre cruzar os portões da residência. A revelação da personalidade da filha aguçou minha fantasia e quase apagou os horrores da noite anterior, mas, à imagem desse homem digno, a memória reacendeu. Desci então do morro e, percorrendo uma trilha pela floresta, me coloquei à beira do caminho para esperar sua passagem. Assim que ele apareceu, dei um passo à frente e me apresentei como o inquilino da residência. Ele tinha uma expressão forte e honesta, na qual era fácil ler as emoções misturadas com que me olhou. Via-me como um estrangeiro, um herege e, ainda assim, alguém que fora ferido por uma boa causa. Sobre a família da casa, ele falou com reservas, mas com respeito. Mencionei que ainda não tinha visto a filha, ao que ele observou que era assim que deveria ser e fitou-me com certo questionamento. Finalmente, tomei coragem para fazer referência aos gritos que me perturbaram durante a noite. Ele me ouviu em silêncio e então parou e virou-se parcialmente, como alguém que estava para se despedir.
– O senhor aceita tabaco em pó? – disse ele, oferecendo sua caixa de rapé.
Recusei e então ele acrescentou:
– Sou um velho e assim talvez eu tenha permissão de lembrá-lo de que o senhor é um hóspede.
– Tenho então sua autoridade – retruquei com firmeza suficiente, embora haja percebido a reprovação implícita – para deixar as coisas seguirem seu curso, sem interferir?
– Sim – ele disse, e com uma saudação um tanto inquietante virou-se e me deixou parado onde eu estava.
Mas ele havia feito duas coisas: acalmou a minha consciência e acordou minha sensibilidade.
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