Talvez ele não devesse ter respondido daquela forma. Mas ela não tinha o direito de chamá-lo de partidário dos britânicos nem de brincadeira. A srta. Ivors havia tentado ridicularizá-lo na frente dos outros, desafiando-o e encarando-o com aqueles olhinhos de coelho.
Gabriel viu a esposa vindo em sua direção em meio aos pares que valsavam. Quando o alcançou ela cochichou-lhe ao ouvido:
— Gabriel, a Tia Kate perguntou se você não vai cortar o ganso como de costume. A srta. Daly vai cortar o presunto e eu vou me encarregar do pudim.
— Tudo bem, disse Gabriel.
— Ela vai mandar os mais novos entrarem assim que essa valsa acabar para que a gente possa ocupar a mesa.
— Você estava dançando?, perguntou Gabriel.
— Claro que estava. Você não me viu? Que discussão você teve com Molly Ivors?
— Não tive discussão nenhuma. Por quê? Foi isso o que ela disse?
— Alguma coisa parecida. Estou tentando convencer o sr. D’Arcy a cantar. Mas acho que ele é muito esnobe.
— Não houve discussão nenhuma, disse Gabriel a contragosto, ela simplesmente me convidou para uma viagem ao leste da Irlanda e eu disse que não queria ir.
A esposa enlaçou as mãos empolgada e deu um pulinho.
— Ah, Gabriel, vamos!, exclamou. Eu adoraria ver Galway outra vez.
— Você pode ir se quiser, disse Gabriel com a voz cheia de frieza.
Ela o encarou por um instante e em seguida virou-se em direção à sra. Malins e disse:
— Veja que belo marido, sra. Malins.
Enquanto ela atravessava a sala mais uma vez a sra. Malins, sem dar pela interrupção, continuou a contar a Gabriel sobre os belos panoramas e as belas paisagens da Escócia. Todo ano o genro levava-os para ver os lagos, onde costumavam pescar. O genro era um exímio pescador. Um dia pegou um peixe enorme, enorme, e o homem do hotel ferveu-o para o jantar.
Gabriel mal ouvia o que ela dizia. Com a proximidade do jantar, voltou a pensar sobre o discurso e a citação. Quando viu Freddy Malins se aproximar da mãe vindo do outro lado da sala, cedeu o lugar na cadeira e retirou-se para o vão da janela. A sala já estava vazia e da saleta dos fundos vinha o tilintar de pratos e facas. Os que permaneciam na sala de estar pareciam cansados depois da valsa e conversavam a meia-voz em pequenos grupos. Gabriel tocou a vidraça fria com dedos quentes e trêmulos. Como devia estar frio lá fora! Como seria agradável caminhar sozinho, primeiro ao longo do rio e depois através do parque! A neve estaria acumulada nos galhos das árvores, formando um reluzente chapéu no alto do Wellington Monument. Seria um prazer muito maior do que estar sentado à mesa de jantar!
Correu os olhos pelas anotações para o discurso: hospitalidade irlandesa, memórias tristes, as Três Graças, Páris, a citação de Browning. Repetiu para si mesmo uma frase que havia escrito na resenha: Sentimo-nos diante de uma música atormentada. A srta. Ivors tinha elogiado a resenha. Será que havia sido sincera? Será que de fato tinha uma vida própria por trás de todo aquele propagandismo? Jamais houvera qualquer mal-entendido entre os dois até aquela noite. Gabriel ficou nervoso ao pensar que ela estaria presente à mesa de jantar, encarando-o enquanto falava com aqueles olhos enigmáticos.
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