Viraria o rosto para olhá-lo...
Na esquina da Winetavern Street avistaram um coche. Gabriel alegrou-se com o barulho dos sacolejos porque assim não precisava conversar. Ela ficou olhando para fora da janela e parecia cansada. Trocaram apenas umas poucas palavras enquanto apontavam para um prédio ou para uma rua. O cavalo avançava sob o céu escuro da manhã com um galope cansado, arrastando a velha caixa sacolejante atrás dos calcanhares, e Gabriel mais uma vez se viu em um coche na companhia dela, galopando para pegar um barco, galopando para a lua de mel.
Quando o coche estava atravessando a O’Connell Bridge a srta. O’Callaghan disse:
— Dizem que ninguém atravessa a O’Connell Bridge sem avistar um cavalo branco.
— Dessa vez estou vendo um homem branco, disse Gabriel.
— Onde?, perguntou o sr. Bartell D’Arcy.
Gabriel apontou para a estátua, que estava coberta de neve. Acenou a cabeça e abanou com um gesto familiar.
— Boa noite, Dan, disse com alegria.
Quando o coche parou diante do hotel, Gabriel desceu com um salto e, apesar dos protestos do sr. Bartell D’Arcy, pagou o cocheiro. Também lhe deu um xelim de gorjeta. O homem saudou-o e disse:
— Um próspero Ano-Novo para o senhor.
— Para o senhor também, respondeu Gabriel cordialmente.
Gretta se apoiou no braço dele por alguns instantes ao descer do coche e enquanto permanecia de pé na calçada, despedindo-se dos outros. Apoiou-se de leve, com a mesma leveza de quando haviam dançado juntos algumas horas atrás. Ele sentira-se orgulhoso e feliz, feliz por tê-la, orgulhoso da graça e do porte esponsal de Gretta. Mas naquele instante, com tantas memórias reacesas, o primeiro toque daquele corpo musical e estranho e perfumado varou-lhe o corpo com uma intensa aguilhoada de luxúria. Sob o disfarce do silêncio, apertou o braço da esposa de encontro ao próprio corpo; e, quando estavam na porta do hotel, sentiu que tinham escapado da vida e dos deveres, escapado de casa e dos amigos para fugirem juntos com os corações livres e radiantes ao encontro de uma nova aventura.
Um velho estava cochilando em uma enorme poltrona no saguão. Acendeu uma vela na recepção e os acompanhou até a escada. Os dois seguiram-no em silêncio, com os pés caindo macios sobre os degraus atapetados. Ela subia atrás do mensageiro, com a cabeça inclinada, os frágeis ombros recurvados como se estivesse carregando um fardo, a saia ajustada ao corpo. Gabriel poderia ter abraçado aquele quadril e a estreitado, pois os braços tremiam com o desejo de agarrá-la e apenas a dor das unhas contra a palma das mãos pôde conter aquele impulso animalesco do corpo. O mensageiro parou no meio da escada para ajustar a vela bruxuleante. O casal também parou alguns degraus mais abaixo. No silêncio, Gabriel escutou os pingos da cera quente na bandeja e as batidas do próprio coração junto das costelas.
O mensageiro acompanhou-os ao longo do corredor e abriu uma porta. Em seguida largou a vela cambaleante na mesa de toalete e perguntou a que horas gostariam de ser acordados na manhã seguinte.
— Às oito, disse Gabriel.
O mensageiro apontou para o disjuntor da lâmpada elétrica e começou a balbuciar um pedido de desculpas, mas Gabriel o interrompeu.
— Não queremos luz nenhuma. A luz da rua é suficiente. E além do mais, continuou, apontando a vela com a mão, eu gostaria que o senhor retirasse esse belo artigo daqui.
O mensageiro tornou a pegar a vela, mas devagar, pois havia se surpreendido com aquela ideia. Depois balbuciou um boa-noite e saiu. Gabriel trancou a porta.
A luz fantasmagórica de um poste de iluminação pública projetava uma listra comprida desde uma janela até a porta. Gabriel atirou o sobretudo e o chapéu em um sofá e atravessou o quarto em direção à janela. Olhou para a rua lá embaixo para que as emoções se acalmassem um pouco. Logo se virou e escorou-se em uma cômoda, de costas para a luz.
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