Toda Dublin está falando a respeito desse homem.
— Ele tem uma voz linda, linda!, elogiou a Tia Kate.
Como o piano já houvesse começado por duas vezes o prelúdio à primeira dança, Mary Jane levou os recrutas às pressas para fora da sala. Mal haviam saído quando a Tia Julia entrou devagar, olhando para trás.
— O que houve, Julia? perguntou a Tia Kate, ansiosa. Quem é?
Julia, que estava carregando uma coluna de guardanapos de mesa, virou-se em direção à irmã e disse, como se estivesse surpresa com a pergunta:
— É o Freddy, Kate, com o Gabriel.
De fato, logo atrás Gabriel podia ser visto pilotando Freddy Malins no patamar da escada. Este último, um homem com cerca de quarenta anos, tinha a mesma altura e o mesmo porte de Gabriel, e ombros muito arredondados. O rosto era flácido e pálido, corado apenas nos compridos lóbulos das orelhas e nas largas narinas. Tinha feições rústicas, um nariz grosseiro, uma testa convexa e diminuta, lábios túmidos e protraídos. O peso das pálpebras sobre os olhos e o desgrenhamento do cabelo ralo faziam com que parecesse sonolento. Estava rindo com vontade e em um registro bastante agudo da história que contava a Gabriel na escada e ao mesmo tempo esfregava os ossinhos do punho esquerdo no olho esquerdo.
— Boa noite, Freddy, disse a Tia Julia.
Freddy Malins deu boa noite às senhoras Morkan com modos que pareceram desajeitados por conta da habitual nota em sua voz e, ao ver que o sr. Browne lhe sorria do aparador, atravessou a sala com pernas um tanto bambas e começou a repetir em voz baixa a história que ainda há pouco tinha contado a Gabriel.
— Ele não está muito ruim, está?, perguntou a Tia Kate a Gabriel.
Gabriel tinha uma expressão grave nas sobrancelhas, mas logo tratou de erguê-las e respondeu:
— Ah, não, mal se percebe.
— Ah, que sujeito tinhoso!, disse ela. E a pobre mãe fez com que prometesse parar na véspera do Ano-Novo. Mas agora, Gabriel, vamos para a sala de estar.
Antes de sair da sala com Gabriel ela fez um sinal para o sr. Browne franzindo a testa e balançando o dedo com um gesto ameaçador. O sr. Browne respondeu com um aceno de cabeça e, depois que ela saiu, disse a Freddy Malins:
— Teddy, escute, eu vou lhe dar um belo copo de refrigerante para ver se você se endireita um pouco.
Freddy Malins, que estava quase chegando ao clímax da história, recusou a oferta com um impaciente gesto da mão, porém o sr. Browne, depois de chamar a atenção de Freddy Malins para um certo desalinho nos trajes que vestia, serviu-lhe e alcançou-lhe um copo de refrigerante. A mão esquerda de Freddy Malins aceitou o copo com um gesto mecânico enquanto a mão direita ocupava-se mecanicamente de ajeitar os trajes. O sr. Browne, cujo rosto mais uma vez amarfanhou-se de alegria, serviu um belo copo de uísque para si mesmo enquanto Freddy Malins, antes de chegar ao fim da história, explodiu em um surto de riso bronquítico agudo e, depois de largar o copo intocado e transbordante, começou a esfregar os ossinhos do punho esquerdo no olho esquerdo, repetindo as palavras da última frase na medida em que o surto de riso permitia.
* * *
Gabriel não conseguiu escutar quando Mary Jane tocou a peça da Academia, cheia de escalas velozes e passagens difíceis, para a silenciosa sala de estar. Gostava de música, mas não percebeu melodia alguma na peça e duvidou que ela tivesse qualquer melodia para os demais ouvintes, mesmo que tivessem insistido para que Mary Jane tocasse. Quatro jovens que haviam chegado da sala de aperitivos para ficar no vão da porta ouvindo os sons do piano se afastaram em silêncio depois de alguns minutos. As únicas pessoas que pareciam acompanhar a música eram a própria Mary Jane, que corria as mãos pelo teclado ou erguia-as como uma sacerdotisa em uma imprecação momentânea durante as pausas, e a Tia Kate, que estava postada junto ao cotovelo da pianista para folhear a partitura.
Os olhos de Gabriel, irritados pelo assoalho, que brilhava com cera de abelha sob o peso do lustre, dirigiram-se a um ponto acima do piano. Lá estava pendurada uma gravura da cena da sacada em Romeu e Julieta, e ao lado uma tapeçaria com os dois príncipes assassinados na Torre que a Tia Julia havia feito com lã vermelha, azul e marrom quando ainda era menina. Na época, provavelmente as meninas aprendiam aquele tipo de trabalho na escola, pois houve um ano em que ganhou da mãe como presente de aniversário um colete roxo de popelina com cabecinhas de raposa forrado em cetim marrom e com botões redondos cor de amora. Era estranho que a mãe dele não tivesse nenhum talento musical, mesmo que a Tia Kate costumasse dizer que ela era o cérebro da família Morkan. Tanto ela como Julia sempre haviam demonstrado um certo orgulho em relação à irmã sisuda e maternal. A fotografia dela estava ao lado do espelho. Na imagem, tinha um livro aberto no colo e com o dedo apontava uma passagem para Constantine, que, vestido com um uniforme de marinheiro, estava aos pés da mãe. Foi ela quem escolheu os nomes dos filhos, pois era muito sensível à dignidade da vida em família. Graças a ela Constantine era hoje vigário em Balbriggan e, graças a ela, Gabriel havia se graduado na Royal University. Uma sombra escureceu o rosto dele quando se lembrou da ferrenha oposição da mãe em relação ao casamento.
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