A lembrança de certas frases desrespeitosas que ela havia proferido ainda o incomodava; certa vez disse que Gretta tinha uma beleza campestre, mas não havia nisso o menor fundo de verdade. Foi Gretta quem cuidou da sogra na casa em Monkstown durante a longa doença que terminou por levá-la.

Gabriel sabia que a peça de Mary Jane devia estar próxima do fim porque ela estava repetindo a melodia da abertura com escalas velozes em todos os compassos e, enquanto aguardava o fim, o ressentimento morreu em seu coração. A peça terminou com um trinado de oitavas nos agudos e uma oitava profunda no baixo. Uma grande salva de palmas saudou Mary Jane enquanto, depois de corar e enrolar a partitura, escapulia-se da sala. Os aplausos mais vigorosos vieram dos quatro jovens no vão da porta que haviam se retirado para a sala de aperitivos no início da peça e retornado assim que o piano silenciou.

Logo vieram os preparativos para as quadrilhas. Gabriel viu-se na companhia da srta. Ivors. Era uma jovem de modos sinceros com um rosto salpicado de sardas e vistosos olhos castanhos. Não estava usando um corpete de corte profundo, e o grande broche que trazia em frente à gola ostentava um símbolo irlandês.

Quando todos estavam a postos ela disse de repente:

— Tenho um assunto a tirar a limpo com o senhor.

— Comigo?, surpreendeu-se Gabriel.

A srta. Ivors acenou a cabeça com uma expressão grave no rosto.

— O que seria?, perguntou Gabriel, sorrindo ao perceber aqueles modos solenes.

— Quem é G.C.?, respondeu a srta. Ivors, encarando-o.

Gabriel enrubesceu e estava prestes a franzir a testa, como se não entendesse, quando ela disse de supetão:

— Ah, não se faça de inocente! Eu descobri que o senhor escreve para o Daily Express. Por acaso o senhor não tem vergonha?

— Por que eu deveria ter vergonha?, perguntou Gabriel, piscando os olhos e tentando sorrir.

— Bem, pelo menos eu tenho vergonha do senhor, disse a srta. Ivors sem rodeios. Quem diria, o senhor escrevendo para um tabloide como aquele! Nunca imaginei que o senhor fosse partidário dos britânicos.

Uma expressão de perplexidade surgiu no rosto de Gabriel. De fato, escrevia uma coluna literária todas as quartas-feiras no Daily Express, pela qual recebia quinze xelins. Mas com certeza isso não fazia dele um partidário dos britânicos. Os livros que recebia para resenhar eram quase mais desejados do que o mirrado cheque. Adorava correr os dedos pelas capas e folhear as páginas dos livros recém-impressos. Quase todos os dias, quando terminava de lecionar na universidade, descia até os cais e passava nos buquineiros — no Hickey’s, que ficava na Bachelor’s Walk, no Webb’s ou no Massey’s, que ficavam no Aston’s Quay, ou no O’Clohissey’s, que ficava em uma rua lateral. Não sabia ao certo como responder à acusação. Sentiu vontade de responder que a literatura estava acima da política. Porém os dois eram amigos de muitos anos e tinham feito carreiras paralelas, primeiro na universidade e mais tarde como professores: não poderia arriscar uma frase de efeito com ela. Continuou piscando os olhos e tentando sorrir e murmurou meio sem graça que não via nada de político em escrever resenhas de livros.

Quando chegou a hora de trocar os parceiros Gabriel ainda estava perplexo e desconcertado. A srta. Ivors prontamente tomou-lhe a mão com dedos quentes e disse em um tom delicado e amistoso:

— Eu só estava brincando. Vamos, agora precisamos trocar.

Quando os dois ficaram juntos mais uma vez ela falou sobre a universidade e Gabriel ficou mais aliviado. Alguém tinha lhe mostrado a resenha que ele havia escrito sobre os poemas de Browning. Foi assim que ela descobriu o segredo: mas tinha gostado muito da resenha. Então a srta. Ivors disse de repente:

— Ah, sr. Conroy, o senhor não gostaria de nos acompanhar em uma viagem às Ilhas de Aran nesse verão? Vamos passar um mês inteiro por lá.