Onde morava? Disseram-me vagamente que para os lados

da Gamboa, mas nunca me convidou a lá ir, nem ninguém sabia positivamente onde era.

Na rua era lento, direito, circunspecto. Nada faria então suspeitar o desengonçado da casa do Lavradio, e,

se falava, eram poucas e meias palavras. Nos primeiros dias, encontrava-me sem alvoroço quase sem

prazer, ouvia-me atento, respondia pouco, estendia os dedos e continuava a andar. Ia a toda parte, era

comum achá-lo nos lugares mais distantes uns dos outros, Botafogo, S. Cristóvão, Andaraí. Quando lhe

dava na veneta, metia-se na barca e ia a Niterói. Chamava-se a si mesmo erradio.

— Eu sou um erradio. No dia em que parar de vez, jurem que estou morto.

Um dia encontrei-o na Rua de S. José. Disse-lhe que ia ao Castelo ver a igreja dos Jesuítas, que nunca

vira.

— Pois vamos, disse ele.

Subimos a ladeira, achamos a igreja aberta e entramos. Enquanto eu mirava os altares, ele ia falando, mas

em poucos minutos o espetáculo era ele só, um espetáculo vivo, como se tudo renascera tal qual era. Vi os

primeiros templos da cidade, os padres da Companhia, a vida monástica e leiga, os nomes principais e os

fatos culminantes. Quando saímos, e fomos até à muralha, descobrindo o mar e parte da cidade, Elisiário

fez-me viver dous séculos atrás. Vi a expedição dos franceses, como se a houvesse comandado ou

combatido. Respirei o ar da colônia, contemplei as figuras velhas e mortas. A imaginação evocativa era a

grande prenda desse homem, que sabia dar vida às cousas extintas e realidade às inventadas.

Mas não era só do passado local que ele sabia, nem unicamente dos seus sonhos. Vês aquela estatuazinha

que ali tenho na parede? Sabes que é uma redução da Vênus de Milo. Uma vez, abrindo-se a exposição

das belas-artes, fui visitá-la; achei lá o meu Elisiário, passeando grave, com a sua imensa sobrecasaca.

Acompanhou-me; ao passar pela sala de escultura, dei com os olhos na cópia desta Vênus. Era a primeira

vez que a via. Sonbe que era ela pela falta dos braços.

— Oh! admirável! exclamei.

Elisiário entrou a comentar a bela obra anônima, com tal abundância e agudeza que me deixou ainda mais

pasmado. Que de coisas me disse a propósito da Vênus de Milo, e da Vênus em si mesma! Falou da

posição dos braços, que gesto fariam, que atitude dariam à figura, formulando uma porção de hipóteses

graciosas e naturais.