Realmente, estava fatigado, precisava dormir. Quando ia a voltar para casa, perguntei a mim mesmo se

ele iria sozinho, àquela hora, e deu-me vontade de acompanhá-lo de longe, até certo ponto. Ainda o

apanhei na Rua dos Ciganos. Ia devagar, com a bengala debaixo do braço, e as mãos ora atrás, ora nas

algibeiras das calças. Atravessou o Campo da Aclamação, enfiou pela Rua de S. Pedro e meteu-se pelo

Aterrado acima. Eu, no Campo, quis voltar, mas a curiosidade fez-me ir andando também. Quem sabe se

esse erradio não teria pouso certo de amores escondidos? Não gostei desta reflexão, e quis punir-me

desandando; mas a curiosidade levara-me o sono e dava-me vigor às pernas. Fui andando atrás do

Elisiário. Chegamos assim à ponte do Aterrado, enfiamos por ela, desembocamos na Rua de S. Cristóvão.

Ele algumas vezes parava, ou para acender um charuto, ou para nada. Tudo deserto, uma ou outra

patrulha, algum tílburi, raro, a passo cochilado, tudo deserto e longo. Assim chegamos ao cais da

Igrejinha. Junto ao cais dormiam os botes que, durante o dia, conduziam gente para o Saco do Alferes.

Maré frouxa, apenas o ressonar manso da água. Após alguns minutos, quando me pareceu que ia voltar

pelo mesmo caminho, acordou os remadores de um bote, que de acaso ali dormiam, e propôs-lhes levá-lo

à cidade. Não sei quanto ofereceu; vi que, depois de alguma relutância, aceitaram a proposta.

Elisiário entrou no bote, que se afastou logo, os remos feriram a água, e lá se perdeu na noite e no mar o

meu professor de latim e explicador de matemáticas. Também eu me achei perdido, longe da cidade e

exausto. Valeu-me um tílburi, que atravessava o Campo de S. Cristóvão, tão cansado como eu, mas

piedoso e necessitado.

— Você não quis ir comigo anteontem a São Cristóvão? Não sabe o que perdeu; a noite estava linda, o

passeio foi muito agradável. Chegando ao cais da Igrejinha meti-me num bote e vim desembarcar no Saco

do Alferes. Era um bom pedaço até a casa; fiquei numa hospedaria do Campo de Sant'Ana. Fui atacado

por um cachorro, no caminho do Saco, e por dous na Rua de S. Diogo, mas não senti as pulgas da

hospedaria, porque dormi como um justo. E você que fez?

— Eu?

Não querendo mentir, se ele me tivesse pressentido, nem confessar que o acompanhara de longe, respondi

sumariamente:

— Eu? Eu também dormi como urn justo.

Justus, justa, justum.

Estávamos na casa da Rua do Lavradio.