Enquanto o rapaz tomava fôlego, ordenou às
pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião contou tudo, o desgosto que lhe dava o seminário;
estava certo de que não podia ser bom padre; falou com paixão, pediu-lhe que o salvasse.
— Como assim? Não posso nada.
— Pode, querendo.
— Não, replicou ela abanando a cabeça, não me meto em negócios de sua família, que mal conheço; e
então seu pai, que dizem que é zangado!
Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as mãos, desesperado.
— Pode muito, Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, por
alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu mato-me, se voltar para aquela casa.
Sinhá Rita, lisonjeada com as súplicas do moço, tentou chamá-lo a outros sentimentos. A vida de padre
era santa e bonita, disse-lhe ela; o tempo lhe mostraria que era melhor vencer as repugnâncias e um dia...
Não nada, nunca! redargüia Damião, abanando a cabeça e beijando-lhe as mãos, e repetia que era a sua
morte. Sinhá Rita hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que não ia ter com o padrinho.
— Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda a ninguém...
— Não atende? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro se atende ou não...
Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse à casa do Sr. João Carneiro chamá-lo, já e já; e se não
estivesse em casa, perguntasse onde podia ser encontrado, e corresse a dizer-lhe que precisava muito de
lhe falar imediatamente.
— Anda, moleque.
Damião suspirou alto e triste. Ela, para mascarar a autoridade com que dera aquelas ordens, explicou ao
moço que o Sr. João Carneiro fora amigo do marido e arranjara-lhe algumas crias para ensinar. Depois,
como ele continuasse triste, encostado a um portal, puxou-lhe o nariz, rindo:
— Ande lá, seu padreco, descanse que tudo se há de arranjar.
Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e vinte e sete nos olhos. Era apessoada, viva,
patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava como diabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da
situação, não lhe custou muito. Dentro de pouco, ambos eles riam, ela contava-lhe anedotas, e pedia-lhe
outras, que ele referia com singular graça. Uma destas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a uma das
crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara
que estava ao pé da marquesa, e ameaçou-a:
— Lucrécia, olha a vara!
A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha
a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era
uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão
esquerda. Contava onze anos.
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