Esta senhora, que cultivava a

música e a poesia, era requestada por alguns cavalheiros, e mostrava-se fiel à dinastia decaída. Bernardão

ofereceu-lhe as cousas mais suntuosas e raras, e, por outro lado, a família bradava-lhe que uma coroa na

cabeça valia mais que uma saudade no coração; que não fizesse a desgraça dos seus, quando o ilustre

Bernardão lhe acenasse com o principado; que os tronos não andavam a rodo, e mais isto, e mais aquilo.

Estrelada, porém resistia à sedução.

Não resistiu muito tempo, mas tàmbém não cedeu tudo. Como entre os seus candidatos preferia

secretamente um poeta, declarou que estava pronta a casar, mas seria com quem lhe fizesse o melhor

madrigal, em concurso. Bernardão aceitou a cláusula, louco de amor e confiado em si: tinha mais um olho

que Homero, e fizera a unidade dos pés e das cabeças.

Concorreram ao certâmen, que foi anônimo e secreto, vinte pessoas. Um dos madrigais foi julgado

superior aos outros todos; era justamente o do poeta amado. Bernardão anulou por um decreto o concurso,

e mandou abrir outro; mas então, por uma inspiração de insigne maquiavelismo, ordenou que não se

empregassem palavras que tivessem menos de trezentos anos de idade. Nenhum dos concorrentes

estudara os clássicos: era o meio provável de os vencer.

Não venceu ainda assim porque o poeta amado leu à pressa o que pôde, e o seu madrigal foi outra vez o

melhor. Bernardão anulou esse segundo concurso; e, vendo que no madrigal vencedor as locuções antigas

davam singular graça aos versos, decretou que só se empregassem as modernas e particularmente as da

moda. Terceiro concurso, e terceira vitória do poeta amado.

Bernardão, furioso, abriu-se com os dous ministros, pedindo-lhes um remédio pronto e enérgico, porque,

se não ganhasse a mão de Estrelada, mandaria cortar trezentas mil cabeças. Os dous, tendo consultado

algum tempo, voltaram com este alvitre:

— Nós, Alfa e Ômega, estamos designados nelos nossos nomes para as cousas que respeitam à

linguagem. A nossa idéia é que Vossa Sublimidade mande recolher todos os dicionários e nos encarregue

de compor um vocabulário novo que lhe dará a vitória.

Bernardão assim fez, e os dous meteram-se em casa durante três meses, findos os quais depositaram nas

angustas mãos a obra acabada, um livro a que chamaram Dicionário de Babel, porque era realmente a

confusão das letras. Nenhuma locução se parecia com a do idioma falado, as consoantes trepavam nas

consoantes, as vogais diluíam-se nas vogais, palavras de duas sílabas tinham agora sete e oito, e

vice-versa, tudo trocado, misturado, nenhuma energia, nenhuma graça, uma língua de cacos e trapos.

— Obrigue Vossa Sublimidade esta língua por um decreto, e está tudo feito.

Bernardão concedeu um abraço e uma pensão a ambos, decretou o vocabulário, e declarou que ia fazer-se

o concurso definitivo para obter a mão da bela Estrelada. A confusão passou do dicionário aos espíritos;

toda a gente andava atônita. Os farsolas cumprimentavam-se na rua pela novas locuções: diziam, por

exemplo, em vez de: Bom dia, como assou? Pflerrgpxx, rouph, aa? A própria dama, temendo que o poeta amado perdesse afinal a campanha, propôs-lhe que fugissem; ele, porém, respondeu que ia ver

primeiro se podia fazer alguma cousa. Deram noventa dias para o novo concurso e recolheram-se vinte

madrigais. O melhor deles, apesar da língua bárbara, foi o do poeta amado. Bernardão, alucinado, mandou

cortar as mãos aos dous ministros e foi a única vingança. Estrelada era tão admiravelmentc bea, que ele

não se atreveu a magoá-la, e cedeu.

Desgostoso, encerrou-se oito dias na biblioteca, lendo, passeando ou meditando. Parece que a última

cousa que leu foi uma sátira do poeta Garção, e especialmente estes versos, que pareciam feitos de

encomenda:

O raro Apeles,

Rubens e Rafael, inimitáveis

Não se fizeram pela cor das tintas;

A mistura elegante os fez eternos.

UM ERRADIO

A PORTA abriu-se... Deixa-me contar a história à laia de novela, dissé Tosta à mulher, um mês depois de

casados, quando ela lhe perguntou quem era o homem representado numa velha fotografia, achada na

secretária do marido.