Quando te vi pela primeira vez, aos últimos raios do sol-poente, lá, atrás da moita de mussenda, sentime tremer todo. Pareceu-me que tu fosses uma divindade descida do céu e adorei-te.

— Cala-te, cala-te!- repetiu, com voz trémula, a menina, escondendo o rosto entre as mãos.

— Não posso calar-me, errante flor da selva!—exclamou Tremal-Naik, com maior paixão.—quando tu desapareceste, pareceu-me que algo se me desprendia do coração. Fiquei como embriagado, diante dos meus olhos bailava a tua visão, o sangue corria-me com mais rapidez nas veias e línguas de fogo subiam-me ao rosto e chegavam até ao meu cérebro. Dir-se-ia que me tinhas enfeitiçado!

— Tremal-Naik!—murmurou ansiosamente a menina.

— Aquela noite não dormi—prosseguiu o caçador de serpentes.—tinha febre e ardia no desejo de voltar a ver-te. Por quê? Ignorava-o, nem sabia tão-pouco como isso poderia acontecer. Era a primeira vez na minha vida que experimentava uma emoção assim.

“Passaram quinze dias. Todas as tardes, ao pôr do sol, te via atrás da mussenda e sentia-me feliz diante de ti; parecia-me que era transportado para um outro mundo, parecia-me que me transformara num outro homem. Tu não me falavas, mas olhavas-me, e, para mim, até isso era demasiado; aqueles teus olhares eram eloqüentes e diziam-me que tu...”

Deteve-se, ofegante, olhando para a menina, que tinha o rosto escondido entre as mãos.

— Ah!—exclamou ele, dolorosamente.—então não queres que eu fale.

A menina estremeceu e fixou-o, com os olhos úmidos.

— Para quê falar—balbuciou ela—,quando entre nós existe um abismo?

Porque vieste aqui, desgraçado, a reacender no meu coração uma esperança vã?

Então não sabes que este lugar é maldito, e proibido, sobretudo, àquele que eu amo?

— Que eu amo?—exclamou Tremal-Naik, cheio de alegria.—repete, repete essa palavra, errante flor da selva! É então verdade que tu me amas? É então verdade que tu vinhas todas as tardes para trás da mussenda porque me amavas?

— Não me faças morrer, Tremal-Naik—exclamou a menina, com angústia.

— Morrer! Por quê? Que perigo te ameaça? Não estou aqui eu para te defender? Que importa se este lugar é maldito? Que importa se entre nós existe um abismo? Eu sou forte, tão forte que, por ti, faria cair este templo, partiria em pedaços aquele horrível monstro diante do qual derramas perfumes.

— Como, tu sabes isso? Quem to disse?

— Vi-te esta noite.

— Então estavas aqui esta noite?

— Sim, estava aqui, ou, antes, lá em cima, agarrado àquela lâmpada, mesmo por cima da tua cabeça.

— Mas quem te trouxe a este templo?

— A sorte, ou, melhor, o laço dos homens que habitam esta terra maldita.

— Então eles viram-te?

— Deram-me caça.

— Ah! Desgraçado, que estás perdido!—exclamou a menina, com desespero.

Tremal-Naik lançou-se para ela.

— Mas, dize-me, que mistério é este?—perguntou ele, com furor que a custo dominava.—por que tanto terror? Que quer dizer aquela monstruosa figura que precisa de perfumes? Que é aquele peixe dourado que nada naquela pia? Que significa a serpente com cabeça de mulher que tens impressa na couraça? Quem são estes homens que estrangulam os seus semelhantes e que vivem debaixo da terra?

Quero sabê-lo, Ada, quero sabê-lo!

— Não mo perguntes, Tremal-Naik.

— Por quê?

— Ah! Se tu soubesses que terrível destino pesa sobre mim!

— Mas eu sou forte.

— Que vale a força contra estes homens?

— Far-lhes-ei guerra sem tréguas.

— Partir-te-ão como quem parte um bambu novo. Não desafiam eles a força da Inglaterra? São fortes, Tremal-Naik, e tremendos! Nada lhes resiste: nem as armadas, nem os exércitos. Tudo tomba diante do seu sopro venenoso.

— Mas quem são eles, então?

— Não posso dizê-lo.

— E se eu to ordenasse?

— Recusaria.

— Quer dizer que tu... desconfias de mim!—exclamou Tremal-Naik, com raiva.

— Tremal-Naik! Tremal-Naik!—murmurou a infeliz jovem, com voz angustiada O caçador de serpentes cruzou os braços.

— Tremal-Naik—prosseguiu a menina—,pesa sobre mim uma condenação, uma condenação terrível e espantosa, que só acabará com a minha morte. Amei-te, valente filho da selva, continuo a amar-te, mas...

— Ah! Tu amas-me!—exclamou o caçador de serpentes.

— Sim, amo-te, Tremal-Naik.

— Jura-o sobre aquele monstro que está junto de nós.

— Juro-o!—disse a jovem, estendendo a mão para a estátua de bronze.

— Jura que serás minha esposa!

Um espasmo descompós os traços da jovenzinha.

— Tremal-Naik—murmurou ela, com voz sombria—,serei tua esposa, se isso for possível!

— Ah! Tenho talvez um rival?

— Não, nem haverá ninguém tão audaz que fixe em mim os seus olhos.

Pertenço à morte.

Tremal-Naik tinha dado dois passos para trás, com as mãos agarradas à cabeça.

— À morte!—exclamou.

— Sim, Tremal-Naik, pertenço à morte. O dia em que um homem puser em mim as suas mãos, o laço dos vingadores dará cabo da minha vida.

— Mas estarei a sonhar?

— Não, estás acordado e aquela que te fala é a mulher que te ama.

— Ah! Que tremendo mistério!

— Sim, tremendo mistério, Tremal-Naik. Entre nós existe um abismo que ninguém será capaz de encher... Fatalidade! Mas que fiz eu para ser tão desgraçada?

Que crime cometi para ser maldita?

Um pranto sufocado abafou-lhe a voz e o rosto banhou-se-lhe de lágrimas.

Tremal-Naik emitiu um rugido surdo e cerrou os punhos com tal força que fez estalar os ossos.

— Que posso fazer por ti?—perguntou ele, comovido até ao fundo da alma.— essas tuas lágrimas doem-me, errante flor da selva. Diz-me o que devo fazer, ordena e eu obedecer-te-ei melhor do que um escravo. Queres que eu te tire deste lugar? Fá-lo-ei, nem que tenha de perder a vida ao tentar fazê-lo.

— Oh! Não, não!—exclamou a jovenzinha assustada.—seria a morte para nós dois.

— Queres que me vá embora daqui? Ouve, eu amo-te muito, mas, se a tua vida exigir a nossa separação eterna, eu dominarei o amor que nasceu no meu coração. Serei um condenado, será um martírio contínuo para mim, mas fá-lo-ei.

Fala, que devo fazer?

A menina permanecia calada e soluçava. Tremal-Naik puxou-a docemente para si e estava para abrir os lábios quando, vinda de fora, ecoou a nota aguda do ramsinga.

— Foge! Foge, Tremal-Naik!—exclamou a menina, fora de si pelo terror.— foge, ou estamos perdidos!

— Ah! Maldita trombeta!—rosnou Tremal-Naik, rangendo os dentes.

— São eles que chegam—prosseguiu a menina, com voz despedaçada.—se nos encontram, imolar-nos-ão à sua terrível divindade. Foge!

— Oh! Isso nunca!

— Queres então fazer-me morrer!

— Eu te defenderei!

— Mas foge, desgraçado! Foge!

Por resposta, Tremal-Naik recolheu a carabina, que estava no chão, e carregou-a. A menina compreendeu que aquele homem era inabalável nas suas decisões.

— Tem piedade de mim!—disse ela, angustiada.—eles chegam.

— Pois bem, esperá-los-ei—respondeu Tremal-Naik.—o primeiro homem que ousar levantar a mão para ti, juro pelo meu deus que o matarei como mato os tigres da selva.

— Pois bem, fica, já que és teimoso, valente filho da selva; eu te salvarei.

Apanhou o sari e dirigiu-se para a porta donde tinha saído. Tremal-Naik lançou-se para ela, procurando detê-la.

— Aonde vais?—perguntou-lhe.

— A receber o homem que está para chegar e a impedi-lo de entrar aqui. Esta noite, à meia-noite, voltarei para ti. Então se cumprirá a vontade dos deuses, e talvez... Consigamos fugir.

— O teu nome?

— Ada Corishant.

— Ada Corishant! Ah! Como esse nome é belo! Vai, nobre criatura, espero-te à meia-noite!

A jovem envolveu-se no sari, olhou uma última vez, com os olhos úmidos, Tremal-Naik e saiu, sufocando um soluço.

 

Capítulo 6 - A condenação à morte

  

  

Tendo saído do pagode, Ada, ainda comovida, com o rosto banhado de lágrimas, mas com os olhos cintilantes de altivez, entrara num pequeno salão coberto de esteiras pintadas e decorado com monstruosas divindades, um pouco diferentes das que já descrevemos. Não faltavam ali a serpente com cabeça de mulher, a estátua de bronze de rosto horrível e a pia de mármore branco com o peixinho vermelho.

Um homem tinha já entrado e passeava para trás e para diante com visível impaciência. Era um indiano de alta estatura, magro como um pau, rosto enérgico, olhar coruscante e feroz, queixo coberto por uma pequena barba desgrenhada.

Trazia, enrolado à volta do corpo, um rico dootée, espécie de capa de seda amarela, bordado a ouro, tendo ao centro o misterioso emblema. Os seus braços nus estavam cobertos de cicatrizes brancas e de sinais tão bizarros que um indiano daria cabo da cabeça sem os conseguir decifrar.

Ao ver Ada, o homem tinha parado subitamente, fixando nela um olhar de estranho brilho, e os lábios contraíram-se num sorriso, ou, antes, num riso trocista que metia medo.

— Salve, “virgem do pagode”—disse ele, ajoelhando diante da jovem.

— Salve, chefe predilecto da divindade—respondeu Ada, com voz trémula.

Ambos ficaram calados, olhando-se fixamente. Parecia que ambos procuravam ler os pensamentos um do outro.

— “Virgem do pagode sagrado”—disse, após algum tempo, o indiano—,tu corres um grande perigo.

Ada estremeceu. A entoação do indiano era sombria e ameaçadora.

— Onde estiveste esta noite? Disseram-me que entraste no pagode.

— É verdade.