De vez em quando, porém, parava de remar, suspendia a respiração e ficava alguns instantes à escuta, perguntando depois ao caçador de serpentes se não tinha visto nem ouvido nada.

 

Havia já meia hora que navegavam, quando o silêncio foi quebrado pelo som que se fez ouvir sobre a margem direita, mas tão perto que fez pensar que o tocador estivesse a uma centena de passos de distância.

— Alto!—murmurou Tremal-Naik.

Ainda não tinha acabado de falar quando um segundo ramsinga respondeu ao primeiro. Mas a uma distância maior, entoando uma melodia que tinha tanto de melancólico quanto a outra tinha de alegre e de viva. A música indiana baseia-se em quatro sistemas que têm uma intima relação com as quatro estações do ano e a cada um deles aplica-se um tom e um modo particulares. É melancólica na estação fria, viva e alegre no rejuvenescer da estação, lânguida nos grandes calores do estio, brilhante no outono.

Porque tocavam aqueles dois instrumentos de modo tão contrário? Seria um sinal? Kammamuri receava-o.

— Patrão—disse ele—,fomos descobertos.

— É provável—respondeu Tremal-Naik, que escutava atentamente.

— E se voltássemos atrás? Isto assim não é bom para nós.

— Tremal-Naik nunca volta atrás. Arranca e deixa que os ramsinga toquem à vontade.

O marata retomou os remos, fazendo avançar o gonga, que não tardou a chegar a um lugar onde o rio se apertava, à semelhança dum gargalo de garrafa.

Uma baforada de ar tépido, sufocante, carregado de exalações pestilentas, chegou ao nariz dos dois indianos.

Diante deles, a trezentos ou quatrocentos passos, apareceu uma multidão de pequenas chamas que vagueavam bizarramente sobre a superfície negra do rio.

Algumas, como atraídas por uma força misteriosa, vieram dançar diante da proa do gonga, afastando-se depois com fantástica rapidez.

— Eis-nos no cemitério flutuante—disse Tremal-Naik.—dentro de dez minutos chegaremos ao baniano.

— Passaremos com o gonga?—perguntou Kammamuri.

— Com um pouco de paciência, conseguiremos passar.

— Patrão, não é bom ofender os mortos.

— Brama e Vixnu hão-de perdoar-nos. Arranca, Kammamuri.

Com algumas remadas, o gonga alcançou o estreito do rio e desembocou numa espécie de lago, sobre o qual se entrelaçavam os compridos ramos de colossais tamarindos, formando uma espessa abóbada de verdura.

Ali flutuavam muitos cadáveres que os canais do Ganges tinham arrastado até ao mangal.

— Para a frente!—disse o caçador de serpentes.

 

Kammamuri estava para retomar os remos, quando a abóbada de verdura que cobria aquele cemitério flutuante se abriu, para dar passagem a um bando de estranhos seres de asas negras, pernas longuíssimas e bicos afiados e enormes.

— Que há de novo?—exclamou Kammamuri, surpreendido.

— Os marabus—disse Tremal-Naik.

De facto, uma centena daquelas fúnebres aves do rio sagrado desciam, batendo alegremente as asas e pousando sobre os cadáveres.

— Para a frente, Kammamuri—repetiu Tremal-Naik.

Após uma boa meia hora, o gonga, impulsionado pelos remos, tinha atravessado o cemitério e encontrava-se num lago bastante mais amplo.

Completamente desimpedido, e dividido em dois braços por uma ponta de terra, sobre a qual se elevava uma enorme e singular árvore.

— O baniano!—disse Tremal-Naik.

Ao ouvir aquele nome, Kammamuri estremeceu.

— Patrão!—murmurou ele, com os dentes cerrados.

— Não tenhas medo, marata. Larga os remos e deixa que o gongo aproe sozinho à ilha. Talvez haja alguém nos arredores.

 

Estes cemitérios flutuantes encontram-se com grande freqüência nas Sunderbunds do Ganges. Os indianos que consideram o Ganges um rio sagrado, costumam abandonar os cadáveres à corrente, convencidos de que vão direitos ao céu.

O marata obedeceu, estendendo-se no fundo da canoa, enquanto Tremal-Naik, que, entretanto e à cautela, carregara a carabina, fazia o mesmo.

O gonga, levado pela corrente, que se fazia sentir levemente, dirigiu-se, girando sobre si próprio, para a ponta setentrional da ilha Rajmangal, sede dos seres misteriosos que tinham assassinado o pobre Hurti.

Um silêncio profundo reinava naquele lugar. Não se ouvia sequer o ranger dos gigantescos bambus, já que a aragem nocturna tinha cessado, nem se ouviam as notas do ramsinga. O próprio rio parecia ter-se tornado de óleo.

No entanto, de quando em quando, Tremal-Naik levantava cuidadosamente a cabeça e perscrutava atentamente as margens, nada tranqüilizado por aquele silêncio. O gonga tocou na areia com uma leve fricção, apenas a uma centena de passos do baniano, mas os dois indianos não se mexeram.

Passaram dez minutos de angustiosa expectativa e só então Tremal-Naik ousou levantar-se. A primeira coisa que viu foi uma forma negra, confusa, estendida entre as ervas, a cerca de vinte metros da margem.

— Kammamuri—murmurou—,levanta-te e carrega as tuas pistolas.

O marata não precisou de ouvir a ordem duas vezes.

— Que vês, patrão?—perguntou ele, com um fio de voz.

— Olha para além.

— Eh!...—exclamou o marata, arregalando os olhos.—um homem!

— Cala-te!

Tremal-Naik levantou a carabina, apontando a mira para aquela massa negra, que parecia um ser humano estendido, mas baixou-a sem disparar.

— Vamos ver o que é, Kammamuri—disse ele.—aquele homem não está vivo.

— E se estivesse a fingir que está morto?

— Tanto pior para ele.

Os dois indianos desembarcaram, dirigindo-se sorrateiramente para aquele indivíduo que não dava sinais de vida. Tinham chegado a uma dezena de passos dele, quando um marabu se levantou ruidosamente, voando em direcção ao rio.

— É um homem morto—murmurou Tremal-Naik.—se fosse...

Não terminou a frase. Em quatro saltos chegou junto do cadáver; uma surda exclamação soltou-se-lhe dos lábios, crispados pela ira.

— Hurti!—exclamou.

De facto, aquele era Hurti, o companheiro do indiano Aghur. O infeliz estava estendido de costas, com os braços e as pernas contraídos, provavelmente pelo espasmo, com o rosto terrivelmente decomposto, os olhos abertos, a saltar das órbitas. Os joelhos apresentavam-se partidos e sangrentos, o mesmo acontecendo com os pés, sinal evidente de que tinha sido arrastado durante algum tempo por terra, talvez quando estava ainda agonizante, e da boca escancarada saía-lhe um bom palmo de língua.

Tremal-Naik soergueu o desventurado indiano, para ver em que sítio fora atingido, mas não lhe encontrou no corpo ferida alguma. No entanto, examinando-o melhor, viu à volta do pescoço uma linha roxa bastante marcada e atrás do crânio uma ferida que parecia produzida por uma grande bola ou por uma pedra arredondada.

— Primeiro fizeram-no desmaiar e depois estrangularam-no—disse ele, com voz surda.

— Pobre Hurti—murmurou o marata.—mas para quê assassiná-lo deste modo?

— Havemos de o saber, Kammamuri, e juro-te que Tremal-Naik não deixará impune o delito.

— Receio, patrão, que os assassinos sejam muito poderosos.

— Tremal-Naik será mais poderoso do que eles. Vamos, regressa à canoa.

— E hurti? Vamos deixá-lo aqui?

— Deitá-lo-ei às águas sagradas do Ganges amanhã de manhã.

— Mas esta noite os tigres devoram-no.

— Sobre o cadáver de Hurti vela o caçador de serpentes.

— Mas como? Tu não regressas?

— Não, Kammamuri, eu fico aqui. Quando tiver resolvido os meus problemas, abandonarei esta ilha.

— Queres que te assassinem?

Um sorriso desdenhoso aflorou aos lábios do altivo indiano.

— Tremal-Naik é um filho da selva! Regressa à canoa, Kammamuri.

— Nunca, patrão!

— Por quê?

— Se te acontece alguma desgraça, quem te ajudará? Deixa que eu te acompanhe e juro-te que te seguirei para onde quer que vás.

— Mesmo se eu fosse à procura da visão?

— Sim, patrão.

— Fica comigo, valente marata, e verás que nós os dois havemos de valer por dez. Segue-me!

Tremal-Naik dirigiu-se para a margem, agarrou o gonga por estibordo e, com uma violenta sacudidela, virou-o, metendo-o a pique.

— Que estás a fazer?—perguntou Kammamuri, surpreendido.

— Ninguém deve saber que chegámos aqui. E, agora, a nós compete desvendar o mistério.

Mudaram a pólvora às carabinas e às pistolas, para estarem seguros de não falhar, e dirigiram-se para o baniano, cuja mole imensa se recortava altivamente nas trevas profundas.

 

Capítulo 3 - O vingador de Hurti

  

  

Os banianos, também chamados aí mora ou figueiras dos pagodes, são as árvores mais estranhas e gigantescas que se possa imaginar.

Têm a altura e o tronco dos nossos carvalhos maiores e mais grossos e dos seus inúmeros ramos, estendidos horizontalmente, descem finíssimas raízes aéreas, as quais, mal tocam em terra, afundam-se nela e engrossam rapidamente, infundindo na planta novo alimento e mais vigorosa vida.

Acontece, assim, que os ramos se vão alongando cada vez mais, gerando novas raízes e, portanto, novos troncos, cada vez mais distantes, de modo que uma só árvore cobre uma vastíssima extensão de terreno. Pode dizer-se que forma uma floresta sustentada por centenas e centenas de bizarras colunatas, sob as quais os sacerdotes de Brama colocam os seus ídolos. Na província de Guzerate existe um baniano chamado Cobir Bor, muito venerado pelos indianos, que não hesitam em atribuir-lhe três mil anos de idade; tem um diâmetro de seiscentos metros e nada menos de três mil colunas, ou raízes, se se preferir. Antigamente era ainda maior, mas parte dele foi destruído pelas águas do Nerbudda, que corroeram uma parte da ilha em que cresce.

O baniano sob o qual os dois indianos estavam para passar a noite era um dos mais gigantescos; tinha mais de seiscentas colunas, que sustentavam enormes ramos carregados de pequenos frutos vermelhos e um tronco de enorme grossura, mas que, a certa altura, estava cortado.

Tremal-Naik e Kammamuri, depois de terem examinado escrupulosamente coluna por coluna, para se assegurarem de que atrás delas não se escondia ninguém, sentaram-se junto ao tronco, um ao lado do outro, com a carabina carregada, pousada sobre os joelhos.

— Alguém há-de vir aqui—disse o caçador de serpentes a meia voz.— desgraçado do primeiro que se puser ao alcance da minha carabina.

— Julgas então que os seres misteriosos que assassinaram Hurti vêm aqui?— perguntou Kammamuri.

— Tenho a certeza absoluta disso. Verás, marata, que ainda antes de amanhã saberemos alguma coisa.

— Tomamos conta do primeiro que vier e damos cabo dele.

— É conforme as circunstâncias. E, agora, silêncio e olhos bem abertos.

Tirou de um bolso uma folha semelhante à da hera, conhecida na índia pelo nome de bétele, de sabor um tanto amargo e picante, juntou-lhe um pedacito de noz de areca e um pouco de cal e pôs-se a mastigar aquela mistela, que, segundo se diz, conforta o estómago, fortifica o cérebro, conserva os dentes e refresca o hálito.

Passaram duas horas, longas como séculos, durante as quais nenhum rumor perturbou o silêncio que reinava sob a densa sombra da gigantesca árvore. Devia ser meia-noite, ou pouco menos, quando Tremal-Naik, de ouvidos bem alerta, julgou ouvir um estranho rumor.

Dir-se-ia um estrondo semelhante àqueles que às vezes precedem os terremotos, mas bastante mais surdo.

Tremal-Naik sentiu que uma vaga de inquietação o invadia.

— Kammamuri—murmurou, com um fio de voz.—está em guarda.

— Que viste?—perguntou o marata, estremecendo.

— Nada, mas ouvi um rumor que é novo para mim.

— Onde?

— Pareceu-me que vinha de debaixo da terra.

— É impossível, patrão!

— Tremal-Naik tem os ouvidos bons de mais para se enganar.

— Que julgas que seja?

— Não o sei, mas havemos de sabê-lo.

— Patrão, aqui há um terrível mistério.

— Tens medo?

— Não, sou marata.

— Então havemos de desvendar tudo.

Naquele instante, debaixo da terra, ouviu-se de novo, distintamente, o misterioso estrondo. Os dois indianos olharam-se, surpreendidos.

— Dir-se-ia que, aqui em baixo, tocam um enorme tambor, o hauk, por exemplo—disse Tremal-Naik.

— Não pode ser de outro modo—respondeu Kammamuri.—mas como é que o som vem de debaixo da terra? Será que aqueles seres misteriosos têm o seu asilo debaixo da selva?

— Assim deve ser, Kammamuri.

— Que fazemos, patrão?

— Ficaremos aqui: alguém há-de sair dalguma parte.

— Tykora!—gritou uma voz.

De um salto, os dois indianos puseram-se de pé. Coisa estranha e incrível: aquela voz fizera-se ouvir tão perto deles que parecia que a pessoa que a emitira estava mesmo atrás dos dois homens.

— Tykora!—murmurou Tremal-Naik.—quem pronunciou este nome?

Olhou à sua volta, mas não viu ninguém; olhou para cima, mas não viu nada, a não ser os ramos do baniano, confundidos com as trevas.

— Estará alguém escondido entre os ramos?

— Não—disse Kammamuri, tremendo.—a voz ouviu-se atrás deles.

— É estranho.

— Tykora!—exclamou a mesma voz misteriosa, os dois indianos voltaram a olhar à sua volta.