Não era possível enganarem-se; alguém estava perto deles, mas, para surpresa sua e, digamos também, para seu terror, não era visível.
— Patrão—murmurou Kammamuri—,temos de nos haver com algum espírito.
— Eu não acredito nos espíritos—respondeu Tremal-Naik.—havemos de descobrir este ser que se diverte a assustar-nos.
— Oh!...—exclamou o marata, dando três ou quatro passos para trás, como um bêbado.—olha para cima... Patrão! Olha!
Tremal-Naik levantou os olhos para o baniano e vislumbrou um raio de luz que saía do tronco cortado. Apesar da sua extraordinária coragem, sentiu que o sangue se lhe gelava nas veias.
— Luz!—balbuciou, angustiado.
— Fujamos, patrão!—suplicou Kammamuri.
Debaixo da terra ouviu-se pela terceira vez o misterioso rugido e do tronco do baniano saiu a nota aguda do Ramsinga. Ao longe ecoaram outras notas semelhantes.
— Fujamos, patrão!—repetiu Kammamuri, louco de terror.
— Nunca!—exclamou Tremal-Naik, resolutamente.
Pusera o punhal entre os dentes e agarrara a carabina pelo cano, para servir-se dela como de uma clava. De repente mudou de idéias.
— Vem, Kammamuri—disse ele.—antes de começar a luta, será melhor ver com que teremos de lutar.
Arrastou o marata a cerca de duzentos passos do tronco do baniano e esconderam-se atrás de três ou quatro colunas reunidas, que lhes permitiam ver sem ser vistos.
— Nem uma palavra, agora—disse.—no momento oportuno, agiremos.
Do colossal tronco do baniano saiu uma última nota agudíssima, que despertou todos os ecos das Sunderbunds. O facho de luz que saía do cimo da árvore apagou-se e, em vez dele, apareceu uma cabeça humana coberta por uma espécie de turbante amarelo.
Por momentos olhou à volta, como que a assegurar-se de que ninguém se encontrava por baixo da gigantesca árvore, depois levantou-se... E um homem, indiano, a julgar pela cor da pele, saiu, agarrando-se a um dos ramos. Atrás dele saíram mais quarenta indianos, que se deixaram escorregar pelas colunatas até à terra.
Estavam, todos eles, quase nus. Só um dubgah, espécie de pequeno saio, dum amarelo sujo, lhes cobria as ancas e nos seus peitos viam-se tatuagens estranhas, que pretendiam ser letras de sânscrito; justamente ao centro, desenhava-se uma serpente com cabeça de mulher.
Um fino cordão de seda, que parecia um laço, mas que tinha na extremidade uma bola de chumbo, dava várias voltas ao dubgah, enquanto um punhal pendia daquele estranho cinto.
Aqueles seres misteriosos sentaram-se silenciosamente por terra, formando um círculo à volta do velho indiano, de braços enormes e olhar brilhante como o dum gato.
— Meus filhos—disse ele, com voz grave—,a nossa mão poderosa feriu o desgraçado que ousou pisar este solo consagrado dos tugues, que nenhum estranho pode violar. É uma vítima mais a acrescentar às outras caídas sob o nosso punhal, mas a deusa não está ainda satisfeita.
— Bem o sabemos—responderam em coro os indianos.
— Sim, filhos livres da Índia, a nossa deusa pede outros sacrifícios.
— Que o nosso grande chefe ordene, e todos nós partiremos.
— Bem sei que sois filhos valentes—disse o velho indiano.—mas o tempo ainda não chegou.
— Que esperamos então?
— Um grande perigo nos ameaça, meus filhos.
— Qual?
— Um homem lançou os seus olhares sobre a "virgem" que vela o pagode da deusa.
— Horror!—exclamaram os indianos.
— Sim, filhos meus, um homem audaz ousou olhar no rosto a "virgem"
errante; mas esse homem, se não cair abatido pelo fulgor da deusa, perecerá debaixo do nosso laço infalível.
— Quem é esse homem?
— A seu tempo o sabereis. Trazei-me a vítima.
Dois indianos levantaram-se e dirigiram-se para o lugar onde jazia o cadáver do pobre Hurti. Tremal-Naik, que assistira sem pestanejar àquela estranha cena, ao ver aqueles dois homens que agarravam o morto pelos braços, arrastando-o para o tronco do baniano, levantara-se de um salto, com a carabina na mão.
— Ah! Malditos!—exclamou ele, com voz surda, apontando-lhes a arma.
— Que fazes, patrão?—murmurou Kammamuri, agarrando-lhe na arma e baixando-a.
— Deixa que os mate, Kammamuri—disse o caçador de serpentes.—Foram eles que mataram Hurti, é justo que eu o vingue.
— Queres perder-nos a nós dois. São quarenta.
— Tens razão, Kammamuri. Atacá-los-emos a todos de uma vez.
Baixou a carabina e voltou a agachar-se, enquanto mordia os lábios, para dominar a cólera.
Os dois indianos tinham então arrastado Hurti para o meio do círculo e tinham-no deixado cair aos pés do velho.
— Cali!—exclamou ele, erguendo os olhos ao céu.
Tirou o punhal do cinto e enterrou-o no peito de Hurti.
— Miserável—gritou Tremal-Naik.—É demais!
Atirara-se para fora do esconderijo. Um relâmpago rasgou as trevas, seguido duma estrepitosa detonação, e o velho indiano, ferido em cheio no peito pela bala do caçador de serpentes, caiu sobre o corpo de Hurti.
Capítulo 4 - Na selva
Ao ouvir aquela súbita detonação, os indianos tinham-se levantado dum salto, com o laço na mão direita e o punhal na esquerda. Vendo o seu chefe debater-se por terra, cheio de sangue, esqueceram por momentos aquele que o matara, para correr em seu auxílio. Esses momentos bastaram para que Tremal-Naik e Kammamuri fugissem sem ser vistos.
A selva, coberta de espessas moitas espinhosas de bambus gigantescos, que prometiam refúgios inacessíveis, estava a poucos passos. Os dois indianos precipitaram-se para ela, correndo desesperadamente durante cinco ou seis minutos; depois deixaram-se cair debaixo duma moita bastante espessa de bambus que não deviam ter menos de dezoito metros de altura.
— Se tens amor à vida—disse Tremal-Naik a Kammamuri—,não te mexas!
— Ah! Patrão! Que fizeste!—disse o pobre marata.—vamos tê-los todos atrás de nós e seremos estrangulados, como o desgraçado Hurti.
— Vinguei o meu companheiro. Aliás, não nos encontrarão.
— São espíritos, patrão.
— São homens. Cala-te e olha bem à tua volta.
Ao longe ouviam-se os brados dos terríveis habitantes do baniano.
— Vingança! Vingança!—gritavam.
Três notas agudas, as notas do ramsinga, ecoaram pela selva e debaixo da terra ouviu-se o ribombar sombrio que pouco antes se fizera ouvir. Os dois caçadores enovelaram-se, encostando-se um ao outro e suspendendo a respiração.
Sabiam que, se fossem descobertos, seriam estrangulados sem remissão pelos laços de seda daqueles monstruosos indivíduos, que já tantas vítimas tinham sacrificado.
Não tinham passado ainda três minutos quando ouviram os bambus abrir-se violentamente e viram, entre as trevas, um daqueles homens, com o laço na mão direita e o punhal na esquerda, passar como uma flecha diante da moita e desaparecer no emaranhado da selva.
— Viste-o, Kammamuri?—perguntou em voz baixa Tremal-Naik.
— Sim, patrão—respondeu o marata.
— Julgam que estamos bastante longe e correm na esperança de nos apanharem. Dentro de poucos minutos não teremos um único homem atrás de nós.
— Desconfiemos, patrão, aqueles homens metem-me medo.
— Não tenhas medo, que estou cá eu. Está calado e presta atenção.
Um outro indiano, armado como o primeiro, passou correndo, instantes depois, e também ele desapareceu no emaranhado dos bambus.
Ao longe ouviram-se ainda alguns gritos e assobios, que pareciam, ou, antes, deviam, ser um sinal; depois tudo ficou silencioso.
Meia hora passou. Tudo indicava que os indianos, lançados talvez numa falsa pista, estavam suficientemente longe. O momento não podia ser mais propício para dar meia volta e fugir em direcção à margem.
— Kammamuri—disse Tremal-Naik—,podemos pôr-nos a caminho. Na minha opinião, os indianos devem estar todos à nossa frente no meio da selva.
— Tens mesmo a certeza, patrão?
— Não ouço qualquer rumor.
— E aonde vamos? Ao baniano?
— Sim, marata.
— Queres talvez entrar lá dentro?
— Por ora, não. Mas amanha à noite voltaremos e desvendaremos o mistério.
— Mas quem supões que sejam aqueles homens?
— Não o sei, mas hei-de sabê-lo, Kammamuri, como hei-de saber quem é aquela mulher que vela no pagode da sua terrível deusa. Ouviste o que disse aquele velho?
— Sim, patrão.
— Não sei, mas tenho a impressão de que falava de mim e suspeito de que aquela "virgem" seja...
— Quem?
— A mulher que me enfeitiçou, Kammamuri. Quando o velho falou dela, senti que o meu coração batia com uma estranha veemência, e isso acontece-me sempre que...
— Cala-te, patrão!...—murmurou Kammamuri, com voz sufocada.
— Ouviste alguma coisa?
— Um bambu mexeu-se.
— Onde?
— Lá em baixo... A trinta passos de nós.
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