Era uma monstruosa serpente pitão, de comprimento superior a sete metros, que se estendia para o caçador de serpentes, esperando apanhá-lo entre as suas espirais viscosas e triturá-lo com um daqueles terríveis apertões aos quais nada há que resista. Tinha a boca aberta, com o maxilar inferior dividido em duas garras, como os ferros duma tenaz, a língua em forquilha, estendida, e os olhos acesos, a brilharem sinistramente na escuridão profunda.

Tremal-Naik deixara-se cair por terra, para não ser apanhado pelo réptil monstruoso e reduzido a um montão de ossos partidos e de carne sanguinolenta.

“Se me mexo, estou perdido”, murmurou, com extraordinário sangue-frio.

“Se o indiano que vai à minha frente não dá conta de nada, estou salvo.”

O réptil descera tanto que com a cabeça tocava o solo. Esticou-se em direcção ao caçador de serpentes, que conservava uma rigidez de cadáver, ondulou um pouco sobre ele, lambendo-o com a língua fria, e depois tentou meter-se-lhe por baixo, para o envolver. Três vezes voltou à carga, assobiando de raiva, e três vezes se retirou, contorcendo-se de mil modos, subindo e voltando a descer pelo bambu, à volta do qual se agarrara.

Tremal-Naik, a tremer, horrorizado, continuava imóvel, fazendo esforços sobre-humanos para se dominar; mas, assim que viu o réptil levantar-se enrolando-se em parte sobre si próprio, apressou-se a rastejar cerca de cinco ou seis metros. Julgando-se fora de perigo, voltara a levantar-se, quando ouviu uma voz ameaçadora, que gritava:—Que fazes aqui?

Tremal-Naik levantara-se prontamente, com o punhal na mão. A sete ou oito metros de distância, bastante perto do lugar ocupado pelo réptil, surgira de repente um indiano de alta estatura, extremamente magro, armado dum punhal e duma espécie de laço que terminava numa bola de chumbo.

Tatuada no peito, trazia a misteriosa serpente com cabeça de mulher, rodeada por alguns caracteres sânscritos.

— Que fazes aqui?—repetiu o indiano, em tom ameaçador.

— E tu, que fazes tu?—repetiu Tremal-Naik, com uma calma glacial.—és talvez um daqueles miseráveis que se divertem a assassinar as pessoas que aqui desembarcam?

— Sim, e fica a saber que farei o mesmo contigo.

Tremal-Naik pôs-se a rir, olhando o réptil, que começava a desdobrar os seus anéis ondulantes quase sobre a cabeça do indiano.

— Tu julgas que me matas—disse o caçador—,e, no entanto, a morte adeja sobre ti.

— Mas antes morrerás tu!—gritou o indiano, fazendo assobiar a corda de seda à volta da cabeça.

Um sibilar lamentoso emitido pelo réptil deteve-o no momento em que lançava a bola de chumbo.

— Oh!—exclamou, manifestando um profundo terror.

Tinha levantado a cabeça e encontrara-se diante do réptil. Quis fugir e deu um salto para trás, mas tropeçou num bambu cortado e caiu nas ervas.

— Socorro, socorro!—gritou ele, desesperadamente.

O réptil enorme deixara-se cair para terra e num abrir e fechar de olhos apanhara o indiano entre os seus anéis, apertando de tal forma que lhe impedia a respiração e lhe partia todos os ossos do corpo.

— Socorro! Socorro!—repetiu o desgraçado, arregalando assustadoramente os olhos.

Com um movimento espontâneo, Tremal-Naik lançara-se para o grupo.

Com um terrível golpe de cutelo, cortou em dois o pitão, que silvava raivosamente, cobrindo de baba sangrenta a vítima. Estava para recomeçar, quando ouviu os bambus agitarem-se furiosamente de várias partes.

— Ei-lo!—gritou uma voz Eram outros indianos, que acorriam ao local, companheiros do infeliz que o réptil, embora cortado em dois, triturava, fazendo-lhe jorrar o sangue. Tremal-Naik compreendeu o perigo que corria, e, sem esperar mais, iniciou uma fuga precipitada através da selva.

— Ei-lo! Ei-lo!—repetiu a mesma voz.—fogo sobre ele! Fogo!—um tiro de arcabuz ressoou, despertando todos os ecos da selva, depois um outro e ainda um terceiro. Tremal-Naik, que miraculosamente escapara aos projécteis, tinha-se voltado, rugindo como as feras que costumava caçar na selva.

— Ah, miseráveis!—gritou ele, furioso.

Tirara a carabina e apontara-a contra os assaltantes que vinham à frente, com os punhais nos dentes e os laços na mão, prontos a estrangulá-lo.

Do cano saiu um clarão, seguido duma detonação. Um indiano soltou um grito terrível, levou as mãos à cara e rolou entre as ervas.

Tremal-Naik retomou a sua corrida desenfreada, saltando à direita e à esquerda, de modo a impedir os inimigos de o tomarem como alvo.

Atravessou uma moita de bambus, que abateu furiosamente, e meteu-se na espessura da selva, fazendo perder o rasto aos seus perseguidores.

Correu assim durante um quarto de hora; depois deteve-se um momento, a tomar fôlego, na orla da plantação, lançando-se a seguir como um louco nos terrenos pantanosos e descobertos, sulcados por inúmeros pequenos canais de águas estagnadas. Tinha os olhos injectados de sangue e espuma nos lábios, mas continuava a correr como se tivesse asas nos pés, saltando todos os obstáculos que lhe impediam o caminho, enterrando-se nos pântanos, mergulhando nos charcos ou nos canais, obcecado por uma única idéia: colocar entre si e os seus perseguidores o maior espaço possível.

Quanto terá corrido, não o pôde saber. Quando se deteve, encontrava-se a cerca de duzentos passos dum soberbo pagode, que se erguia isolado sobre a margem dum amplo lago rodeado de colossais ruínas.

 

Capítulo 5 - A “virgem do pagode”

    

 

Aquele pagode, no mais puro estilo indiano, era o mais belo que Tremal-Naik vira alguma vez nas Sunderbunds. Construído totalmente em granito cinzento, tinha uma altura de mais de dezoito metros, uma base que mediria cerca de dois terços da altura, e era contornado por estupendas colunas esculpidas com aquela ousadia que distingue a raça indiana.

À medida que subia, o pagode ia estreitando pouco a pouco, até terminar numa espécie de cúpula, a que se sobrepunha uma gigantesca bola de metal com uma ponta bastante aguda, que sustentava a misteriosa serpente com cabeça de mulher.

Nos ângulos do pagode viam-se o trimúrti indiano, figurado por três cabeças sobre um só corpo, sustentado por três pernas, e, aqui e ali uma multidão de esculturas estranhas, curiosas, representando muitas figuras da história sagrada dos indianos, Brama, Xiva, Vixnu, Parvati, a sinistra deusa da morte, sentada sobre um leão, Darma-Ragia, o plutão dos indianos, e muitas outras divindades, bem como um grande número de monstros horríveis e cabeças de elefante com as trombas estendidas.

Como dissemos, Tremal-Naik parara de repente, surpreendido por se encontrar diante dum pagode, quando julgava encontrar a selva.

“Um pagode!”, exclamara. “Estou perdido!”

Olhou rapidamente à sua volta. Encontrava-se numa espécie de clareira com mais de meia milha de extensão, desprovida de moitas e bambus.

“Estou perdido!”, repetiu ele, irado. “Se não encontro um esconderijo, dentro de cinco minutos chovem-me em cima aqueles homens terríveis e estrangulam-me.”

Por instantes, pensou em voltar para trás e alcançar de novo a selva, para se esconder; mas tinha mais de oitocentos metros a percorrer, isto é, o tempo suficiente para que os seus perseguidores o descobrissem. Pensou nas ruínas que contornavam o lago, mas não apresentavam esconderijos seguros.

“E se subisse lá para cima?”, murmurou ele, olhando para o cimo do pagode.

“E porque não?”

Um homem como ele, habituado a toda a espécie de exercícios e que possuía uma força hercúlea e uma agilidade extraordinária, que faria inveja a um macaco, era capaz de subir até à cúpula, agarrando-se às colunatas e às esculturas, que se ligavam entre si, de modo a formar uma bizarra e escarpada escadaria.

Lançou-se em direcção ao pagode, depois de ter desarmado a carabina e de a ter posto às costas; ficou por instantes à escuta, e, tranqüilizado pelo profundo silêncio que ali reinava, empreendeu a ousada escalada.

Com uma rapidez surpreendente, subiu para uma coluna e dali saltou para as paredes do templo, agarrando-se às pernas duma divindade, içando-se sobre os seus corpos, pousando os pés sobre as suas cabeças, segurando-se às trombas dos elefantes e aos chifres dos bois do deus Xiva.

Coisa estranha, incompreensível, misteriosa: à medida que subia, sentia o coração bater-lhe, apressado, e os membros ganharem uma força extraordinária.

Sentia-se como que atraído por uma força irresistível para o cimo do pagode, e, ao contacto com aquelas pedras frias, experimentava sensações desconhecidas e inexplicáveis.

Seriam duas horas da manhã quando, depois de ter executado vinte manobras aéreas que fariam gelar o sangue nas veias a um ginasta e de ter corrido outras tantas vezes o perigo de se estatelar cá em baixo e partir a cabeça, chegou à cúpula. Com um último impulso, agarrou-se à gigantesca bola de metal, coroada pela ponta que sustentava a serpente com cabeça de mulher.

Com surpresa sua, encontrou-se a ondular por cima duma larga abertura, profunda e escura como um poço, atravessada por uma barra de bronze, em que conseguiu apoiar os pés.

“Onde estou?”, perguntou de si para si. “Este poço deve levar, certamente, ao interior do pagode.”

Abandonou a grande bola e agarrou-se à barra, olhando para baixo, mas não viu senão trevas; apurou o ouvido, mas, abaixo dele, reinava o mais profundo silêncio, sinal evidente de que ninguém se encontrava no pagode. Uma coisa que o impressionou foi uma corda bastante grossa, formada por uma substância vegetal luzidia e muito flexível, presa à barra e que desaparecia lá em baixo, no fundo da abertura. Agarrou-a e, reunindo as suas forças, puxou-a para si; apercebeu-se de que, na extremidade, estava um corpo um tanto pesado, o qual, com a tracção, ondulou, retinindo. “Deve ser uma lâmpada”, pensou Tremal-Naik. De repente, bateu com a mão na testa. “Oh! Já me lembro!”, exclamou ele, vivamente emocionado. “Sim. Aqueles dois homens falavam dum pagode... duma ‘virgem’ que vela... Santo Vixnu, dar-se-á o caso...”

Deteve-se e levou ambas as mãos ao coração, que batia com extraordinária veemência. Experimentava então uma emoção análoga àquela que sentia nas tardes em que se encontrava diante da estranha visão.

Num abrir e fechar de olhos, agarrou-se àquela corda e pôs-se a descer nas trevas, embora ignorasse onde iria acabar e aquilo que o esperava em baixo.