Poucos minutos depois, os seus pés batiam num objecto arredondado, que desferiu um som metálico várias vezes repetido pelos ecos do templo.
Estava para se curvar e ver o que era, quando um som semelhante ao ranger duma porta que gira sobre os gonzos chegou aos seus ouvidos. Olhou para baixo e pareceu-lhe descobrir, entre as trevas, uma sombra que se movia, mas sem fazer qualquer barulho.
“Quem será?”, perguntou para si próprio, arrepiado.
Com uma das mãos, tirou a pistola e empunhou-a, decidido a vender cara a vida, se fosse descoberto. E esperou, imóvel como uma estátua de granito.
Um profundo suspiro chegou até ele; aquele suspiro impressionou-o de um modo novo, misterioso. Foi como se lhe tivessem vibrado uma punhalada no coração.
“Estou louco ou enfeitiçado”, murmurou ele.
A sombra parara diante duma massa negra e enorme que se encontrava justamente por debaixo da corda.
“Eis-me aqui, horrível divindade!”, exclamou uma voz de mulher que fez estremecer Tremal-Naik até ao fundo da alma.
No auge da surpresa, Tremal-Naik ouviu deitar para o chão uma matéria líquida e sentiu espalhar-se no ar um perfume suave.
“Monstruosa gente”, pensou ele. “E, no entanto, aquela sombra tem uma voz doce como as notas do sanguy... É estranha! Estou a tremer como se tivesse febre. Por quê?”
“Odeio-te”, exclamou a mesma voz, com profunda amargura. “Odeio-te, aterradora divindade, que me condenaste a eterno martírio, depois de me teres destruído tudo o que tinha de mais caro na terra. Assassinos! Malditos sejais nesta vida e na outra!”
Uma onda de pranto seguiu a maldição que aquele misterioso ser lançava sobre aqueles homens a quem chamara assassinos. Pela segunda vez, Tremal-Naik tremeu da cabeça aos pés e ele, o homem inacessível, ele, o selvagem filho da floresta, ele, o caçador de serpentes, pela primeira vez sentiu-se comovido.
Por instantes, veio-lhe a idéia de se deixar cair no vácuo, mas a desconfiança deteve-o. Aliás, era tarde demais, pois a sombra tinha-se afastado, desaparecendo nas trevas, e pouco depois ouviu o ranger da porta que se fechava.
“Mas não serei então capaz de desvendar este mistério?”, murmurou Tremal-Naik, quase com raiva. “Quem são estes monstros que têm necessidade de vítimas? Quem é esta horrível divindade? Quem é esta mulher que à meia-noite, à hora dos delitos, dos fantasmas, das vinganças, vem aqui amaldiçoar? Quem é este ser que, enquanto os outros estrangulam, chora? Que, enquanto os outros me fazem arrepios, me comove? Que, enquanto os outros têm a voz sombria, tem a voz doce, suave como uma música celeste? Este ser, esta mulher, eu quero vê-la, quero falar-lhe, e tudo se esclarecerá. Não sei, mas uma voz interior me diz que esta mulher, eu já a vi outras vezes, já me fez palpitar o coração, esta mulher é...”
Deteve-se, ofegante, quase aterrado. Uma chama lhe subiu ao rosto e inundou-o de suor.
“E se fosse a minha visão!”, exclamou, com voz trémula de emoção.
“Quando marinhava pelo templo, eu estava comovido quando desci cá abaixo, eu tremia. E se fosse verdade?... desçamos”.
Deixou-se cair e pousou os pés sobre um objecto duro e áspero, que emitiu aquele som particular dos corpos metálicos, especialmente do bronze.
Apercebeu-se de que estava em cima da massa negra diante da qual a mulher tinha derramado o perfume. Tinha amaldiçoado, tinha chorado.
“Que é isto?”, murmurou ele.
Inclinou-se, apoiou as mãos sobre aquela massa de bronze e deixou-se escorregar para baixo, até tocar o solo. Os seus pés escorregaram sobre uma superfície lisa e úmida.
“Foi aqui que ela espalhou o perfume”, disse ele, para consigo. “O odor que me chega às narinas o confirma. Amanhã saberei onde me encontro e com quem tenho de me haver.”
Deu seis ou sete passos, cambaleando nas trevas, e enrolou-se sobre si próprio, com as pistolas na mão, esperando que um raio de luz iluminasse aquele misterioso templo.
Passaram algumas horas sem que qualquer rumor perturbasse o fúnebre silêncio que reinava naquele lugar; lá em cima, na abertura, o céu começava a clarear e os astros a empalidecer aos primeiros alvores da madrugada. Tremal-Naik, imóvel, com os olhos bem abertos e os ouvidos à escuta, continuava a esperar, com aquela paciência que é própria das raças asiáticas.
Por volta das quatro horas, o sol apareceu improvisamente no horizonte, iluminando a grande bola de bronze que se erguia no cimo do pagode e da ampla abertura desceu um raio de luz. Tremal-Naik pôs-se em pé, surpreendido, estonteado pelo espectáculo que se lhe oferecia à vista.
Encontrava-se numa espécie de imensa cúpula, cujas paredes estavam bizarramente pintadas. As primeiras dez encarnações de Vixnu, deus conservador dos indianos, que tem a sua residência no Vaicondu, ou mar de leite da serpente Adissescien, estavam pintadas a toda a volta, rodeadas pelos principais semideuses venerados pelos indianos, protectores dos oito ângulos do mundo, habitantes do Sorgon, isto é, do paraíso daqueles que não têm méritos suficientes para irem para o Kailesson, ou paraíso de Xiva. A meio da cúpula estavam esculpidos os gigantescos génios malfazejos, que, divididos em cinco tribos, erram pelo mundo, do qual não podem sair, nem merecer a felicidade prometida aos homens senão depois de terem recolhido um grande número de orações.
No meio do pagode erguia-se uma grande estátua de bronze, representando uma mulher com quatro braços, um dos quais brandia uma comprida adaga e outro segurava uma cabeça.
Um grande colar de caveiras descia-lhe até aos pés e um cinto de mãos e braços decepados cingia-lhe a cintura.
O rosto daquela horrível mulher era tatuado e as orelhas adornadas com argolas; a língua, de um vermelho cor de sangue, saía-lhe um bom palmo para fora dos lábios, onde se espelhava um sorriso feroz; os pulsos ostentavam largas pulseiras e os pés pousavam sobre um gigante coberto de feridas.
Aquela divindade—era o que saltava de imediato aos olhos—,transportada pela embriaguez do sangue, dançava sobre o corpo duma vítima.
Um outro objecto estranho era uma pequena pia de mármore branco, encastoada nas brilhantes pedras do pavimento. Estava cheia de água cristalina e dentro dela via-se nadar um pequeno peixe muito belo, amarelo-ouro, que se parecia muito com um mangu do Ganges.
Tremal-Naik não tinha visto antes nada de semelhante.
Parara diante da monstruosa divindade e contemplava-a com um misto de espanto e de medo.
Quem seria aquela sinistra figura contornada de caveiras e ornada de mãos e braços decepados? Que significava aquele peixinho dourado a nadar na pia branca?
Que relação tinham aqueles dois estranhos símbolos com os homens ferozes que perseguiam e estrangulavam os seus semelhantes?
“Estarei a sonhar?”, murmurou Tremal-Naik, esfregando várias vezes os olhos. “Não percebo nada.”
Ainda não tinha acabado, quando um leve rumor chegou aos seus ouvidos.
Voltou-se, com a carabina na mão, e recuou imediatamente até à monstruosa divindade, sufocando, com grande dificuldade, um grito de espanto e de alegria.
Diante dele, no limiar duma porta dourada, estava, de pé, uma menina de maravilhosa beleza, com o mais angustioso terror estampado no rosto.
Devia ter os seus catorze anos. Era de estatura graciosa e de formas soberbamente elegantes Tinha as linhas duma pureza antiga, animadas pela cintilante expressão da mulher anglo-indiana.
A pele era cor-de-rosa, duma suavidade incomparável; os olhos grandes, negros e cintilantes como diamantes; um nariz direito, que não tinha nada de indiano; lábios finos, cor de coral, fechados num sorriso melancólico, que deixava ver duas filas de dentes de extraordinária brancura; uma opulenta cabeleira castanho-escura, separada na fronte por uma fiada de grossas pérolas, era apanhada em nós e entrançada com flores de cânhamo de suave perfume.
Como dissemos, Tremal-Naik recuara até à estátua de bronze.
“Ada! Ada! A aparição da selva!”, exclamou ele, com voz sufocada.
Não soube dizer mais nada e para ali ficou, mudo, ofegante, extasiado, a olhar aquela soberba criatura, que continuava a fixá-lo com profundo terror.
De súbito, a menina deu um passo em frente, deixando cair para o chão o amplo sari de seda, orlado por uma larga faixa azul, estampada com desenhos complicados, que a cobria como se fosse uma capa.
Um feixe de luz ofuscante a envolveu, tirando-a da vista do caçador de serpentes, que foi obrigado a fechar os olhos.
Aquela menina estava literalmente coberta de ouro e pedras preciosas de inestimável valor. Uma couraça de ouro, marchetada dos mais belos diamantes de golconda e de guzerate, ornada pela misteriosa serpente com cabeça de mulher, cobria-lhe todo o seio e desaparecia num largo xale de caxemira, bordado a prata, que lhe cingia as ilhargas; pendiam-lhe do pescoço vários colares de pérolas e de diamantes, grossos como nozes; várias pulseiras, também marchetadas de pedras preciosas, ornavam-lhe os desnudados braços, e as calças largas, de seda branca, eram apertadas nos tornozelos, nus e pequeninos, por anéis de coral do mais belo vermelho. Um raio de sol, entrando por uma estreita abertura, batendo naquela profusão de ouro e de jóias, tinha, por assim dizer, imergido a jovenzinha num mar de luz de ofuscante fulgor.
A visão!... A visão!...—repetiu pela segunda vez Tremal-Naik, estendendo os braços para ela.—Oh, como é bela!
A jovem olhou à sua volta, assustada, e levou um dedo aos lábios, como convidando-o a calar-se, e depois caminhou a direito para ele.
— Desgraçado!—disse ela, assustada.—que vieste fazer aqui? Que loucura te trouxe a este horrível lugar?
O caçador de serpentes, sem o querer, caíra de joelhos, estendendo as mãos para ela, que recuou, ainda mais assustada.
— Não me toques!—disse ela, com um fio de voz.
Tremal-Naik soltara um suspiro:—És bela!—exclamou ele, com paixão.
— Cala-te, Tremal-Naik!
— És bela!—repetiu o selvagem filho da floresta.
Ela pós um dedo nos lábios.
— Se não me queres perder, não faças barulho—disse a jovenzinha, censurando-o docemente.—tu ainda não sabes os tremendos perigos que nos ameaçam.
— Eu sou Tremal-Naik! Quem é esse homem que te ameaça? Dize-mo e eu, o caçador de serpentes, te juro que, amanhã, esse inimigo terá desaparecido da terra!
— Não fales assim, Tremal-Naik.
— Por quê? Ouve, menina: nunca na minha selva, apenas povoada por tigres, vira um rosto de mulher.
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