Por uma simples razão: após acender as fogueiras sob seus pés, nem o próprio diabo poderá impedir que suas carcaças se tornem estruturas carbonizadas até o último osso.

Songa gritou alguma ordem imperiosa, e os negros vieram trazendo madeira, que empilharam aos pés de N’Longa e de Kane. O homem ju-ju havia recobrado a consciência e agora gritava algo em sua língua nativa. Novamente, o murmúrio levantou-se em meio à multidão lôbrega. Songa rosnou algo em resposta.

Kane observou a cena de forma quase impessoal. Em algum lugar de sua alma, profundezas primitivas turvas se remexiam, memórias de tempos idos, veladas nas brumas de eras perdidas. Já estivera ali antes, pensou Kane; ele conhecia tudo aquilo – as chamas lúridas golpeando a noite escura, as faces bestiais em expectativa, e um deus, o Deus Negro, ali, nas sombras! Sempre o Deus Negro, à espreita. No passado, durante o alvorecer do mundo, ele conhecera os gritos, o cântico frenético dos adoradores, o discurso dos tambores berrantes, dos sacerdotes entoantes, o odor repelente, inflamado e onipenetrante do sangue recém-derramado. “Tudo isso eu já conheci em algum lugar, em algum momento”, pensou Kane, “Agora sou o protagonista...”

Percebeu que alguém conversava com ele em meio ao rugido dos tambores, mas não havia notado que o batuque voltara a retumbar. O falante era N’Longa:

– Eu poderoso homem ju-ju! Observe agora: trabalho com minha magia. Songa! – sua voz se ergueu em um guincho, que apaziguou o clamor dos tambores.

Songa sorriu depois das palavras de N’Longa, o rufar dos tambores decaiu para uma sinistra monotonia, e Kane escutou Le Loup falar:

– N’Longa diz que fará sua magia agora, tão ameaçadora que leva à morte dos incrédulos. Mas ela jamais foi feita diante da visão de homens vivos; é a inominável magia ju-ju. Observe atentamente, monsieur; é possível que espantemos.

Le Loup riu sardonicamente. Um negro se inclinou, encostando uma tocha à madeira que cercava os pés de Kane. Pequenos jatos de chamas começaram a saltitar e se espalhar. Outro curvou-se para fazer o mesmo com N’Longa, mas hesitou. O feiticeiro se dobrou em suas amarras, com a cabeça despencada sobre o peito. Ele parecia morto. Le Loup praguejou:

– Demônios! O canalha está nos privando do prazer de vê-lo arder nas chamas?

O guerreiro tocou o mago com cautela e disse algo em sua própria língua. Le Loup gargalhou:

– Ele morreu de medo. Um grande feiticeiro, pelo…

Sua voz repentinamente desapareceu. Os tambores pararam como se os percussionistas tivessem morrido de súbito. O silêncio caiu como uma névoa sobre o vilarejo e, na quietude, Kane escutou apenas o estalar agudo das flamas, cujo calor ele começava a sentir. Todos os olhos voltaram-se para o morto sobre o altar; o cadáver se movia!

Primeiro, o espasmo de uma mão, seguido por um movimento a esmo de um braço e, em ato contínuo, contrações convulsivas se espalharam gradualmente por todo o corpo. Lentamente, com gestos cegos e incertos, o cadáver virou-se de lado, e seus membros encontraram o chão. Então, horrífico tal qual uma coisa nascendo, algo pavoroso e reptiliano explodindo as couraças da não existência, o corpo cambaleou e se endireitou, ficando de pé sobre pernas separadas e rigidamente apoiadas, enquanto os braços ainda faziam movimentos inúteis e infantis. Silêncio total, salvo a respiração ofegante de um homem em algum lugar, que soava alta na quietude.

Pela primeira vez na vida, Kane observava um acontecimento de maneira inerte e sem fala. Para sua mente puritana, aquela era a mão de Satã manifesta. Le Loup, sentado em seu trono, com os olhos esbugalhados e a mão ainda meio levantada no gesto interrompido, congelou em silêncio após tal visão inacreditável. Songa, ao seu lado, com boca e olhos abertos, mexia os dedos fazendo curiosos movimentos espasmódicos sobre os braços do trono.

Agora, o cadáver estava ereto, vacilando sobre membros que eram como pernas de pau; o corpo inclinou-se para trás até que os olhos embaçados encararam diretamente a Lua, que se levantava vermelha sobre a selva negra.