Queria brincar com sua vítima, ver o medo chegar àqueles olhos austeros que o haviam feito olhar para baixo, mesmo quando o dono de tais olhos estava amarrado a um poste. Queria matá-lo, enfim, esquartejá-lo lentamente, saciando ao máximo a sua sede de sangue e tortura.
Então, de repente, ele parou, virou-se devagar, olhando para o lado oposto da planície. Kane, confuso, seguiu o olhar do outro.
A princípio, percebeu uma silhueta mais escura entre as sombras da selva. De início, não houve movimento ou som, mas Kane soube instintivamente que alguma terrível ameaça espreitava nas trevas que mascaravam e se fundiam às árvores mudas. Um taciturno horror se aninhava ali, e Kane sentiu como se, no meio daquela sombra monstruosa, olhos inumanos secassem sua alma. Ao mesmo tempo, teve a fantástica sensação de que aqueles olhos não estavam direcionados para ele. O puritano olhou de volta para o matador de gorilas.
Gulka, aparentemente, se esquecera de Kane; permanecia meio agachado, com a lança erguida, olhos fixos na escuridão. O puritano continuou a assistir. Agora, havia movimento nas sombras; elas mesclavam-se fantasticamente e moviam-se para fora da mata fechada, ganhando a planície. Kane piscou: aquela seria a ilusão que precede a morte? A forma para a qual ele olhava era como a que já havia visto em terríveis pesadelos, quando as asas do sono o transportaram através das eras perdidas.
No começo, Kane até pensou que fosse uma zombaria blasfema de um homem, pois o monstro andava ereto e era tão alto quanto um homem. Contudo, era mais largo e volumoso como nenhum homem pode ser, e seus braços gigantes estavam pendurados quase na altura dos pés disformes. Então, a luz da Lua caiu diretamente sobre o rosto bestial. A mente anestesiada de Kane pensou que a coisa fosse o Deus Negro, saindo das sombras, animado e sedento de sangue. Ao perceber todo o corpo coberto de pelos, lembrou-se da coisa parecida com um homem pendurada na viga do teto da cabana, lá no vilarejo. Ele olhou para Gulka.
O gigante negro estava de frente para o mastodôntico gorila, com a lança em riste, e não demonstrava medo, mas sua mente lerda se perguntava qual milagre havia trazido aquela fera tão longe de suas selvas nativas. Havia uma terrível majestade nos movimentos do poderoso macaco à luz do luar. Ele estava mais próximo de Kane do que Gulka, mas não parecia estar preocupado com o homem branco. Seus olhos ardentes e pequenos mantinham-se fixos em Gulka com arrepiante intensidade. Ele avançou com passos curiosamente balançantes.
Ao longe, os tambores sussurravam na noite, como um acompanhamento para aquele severo drama da Era da Pedra. O selvagem se ajoelhou no meio da planície, observando a fera que saía da mata com olhar injetado de sangue, sedento de morte, e ficou frente a frente com uma coisa mais primitiva do que ele. Novamente, fantasmas de memórias sussurraram para Kane: você já viu tais sinais antes, eles murmuraram, naqueles dias turvos do passado, quando fera e homem-fera batalhavam pela supremacia.
Agachado, Gulka afastou-se do macaco em um semicírculo. Com a lança pronta e toda sua habilidade, buscava enganar o gorila para obter uma morte rápida, pois jamais encontrara um monstro como aquele. Embora não tivesse medo, começou a ter dúvidas. O macaco não fez tentativas de espreitar ou de circular; apenas rumou diretamente contra Gulka.
O negro que o encarava, e o branco que assistia à cena não tinham como saber sobre o ódio brutal que guiara o monstro desde as colinas baixas cobertas de florestas do norte para seguir uma trilha de léguas atrás daquele que era o flagelo de sua espécie – o assassino de sua parceira, cujo corpo jazia agora pendurado no teto de uma cabana do vilarejo da tribo.
Ambos estavam próximos agora, fera e homem-fera, e, de repente, com um rugido capaz de fazer o chão tremer, o gorila atacou. Um grande braço peludo defletiu a estocada da lança, e o macaco agarrou o gigante. Houve um som esmigalhador, como se muitos galhos se partissem simultaneamente, e Gulka caiu no chão bruscamente, com braços, pernas e corpo retorcidos em posições estranhas, antinaturais. O símio ficou sobre ele por um instante como uma estátua de triunfo primordial.
Kane escutou os tambores murmurando ao longe. A alma da selva, a alma da selva. Essa frase apareceu em sua mente com reiteração monotônica.
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