Ao se lembrar dos acontecimentos daquela noite, perguntou-se: onde estarão os três que ocupavam o poder diante do Deus Negro? Lá no vilarejo, onde os tambores tocavam, estava Songa – o rei Songa –, outrora senhor da vida e da morte, agora um cadáver murcho, com a face tornada uma máscara de horror. Deitado de costas no meio da planície estava aquele a quem Kane havia seguido por muitas léguas, por terra e mar. E Gulka, o matador de gorilas, estava aos pés de seu assassino, quebrado afinal pela selvageria que o tornara um filho verdadeiro daquela terra sinistra, a qual, enfim, o sobrepujara.

Entretanto, o Deus Negro ainda reinava, pensou Kane vertiginosamente, olhando de volta para as sombras daquele país escuro, sanguinário e bestial. Reinava e não se importava com quem vivia ou morria, contanto que tivesse o que beber. Kane observou o poderoso macaco, perguntando-se quanto tempo levaria antes que notasse sua presença e o atacasse. Mas o gorila não dava sequer evidência de tê-lo visto, tomado por algum impulso obscuro de vingança que o impulsionava. Curvou-se e ergueu o negro. Então, seguiu preguiçosamente até a selva, com os membros flácidos de Gulka arrastados grotescamente. Ao chegar até as árvores, o macaco parou, girando sem esforço o corpo no ar, e arremessou o gigante para o alto, entre os galhos.

Houve um som dilacerante quando um dos membros foi arrancado do corpo após ser girado tão poderosamente, e o matador de gorilas ficou ali, morto e estraçalhado, pendurado hediondamente. O brilho da Lua delineou o grande macaco, que encarava sua vítima silenciosamente; então, como uma sombra negra, ele fundiu-se à selva sem emitir som algum.

Kane caminhou lentamente até o meio da planície e apanhou seu florete. O sangue parou de escorrer de suas feridas e, recobrando parte de suas forças, ele iniciou a caminhada de volta até a costa, onde o navio o aguardava. Ainda parou na beirada da planície para uma última olhadela, mirando o rosto de Le Loup virado para cima, pálido sob o luar, e a silhueta destroçada de Gulka, deixado entre os galhos pelo capricho de uma fera, tal qual a gorila fêmea fora pendurada no vilarejo.

Ao longe, os tambores murmuravam. A sabedoria de nossa Terra é antiga; a sabedoria da nossa Terra é obscura; a quem servimos, nós destruímos. Fuja se quiser viver, mas jamais esquecerá nosso canto. Nunca, nunca”, cantaram os tambores.

Kane virou-se para a trilha que levava à praia e ao navio que estava à sua espera.

cap02

I

Duas estradas levam a Torkertown. A primeira, a rota mais curta e direta, passa no meio de uma charneca árida de terras altas, enquanto a outra, bem mais longa, segue seu caminho tortuoso entre as cristas e os atoleiros dos pântanos, contornando as colinas baixas em direção ao leste. Era uma trilha perigosa e tediosa; então, Solomon Kane fez uma pausa, surpreso, quando um rapaz sem fôlego, vindo da aldeia da qual ele acabara de sair, o alcançou e implorou, em nome da graça de Deus, que tomasse o caminho do pântano.

– O caminho do pântano!? – espantou-se Kane, fitando o rapaz.

Solomon Kane era um homem alto e magro, de rosto pálido e sombrio. Os profundos olhos melancólicos pareciam ainda mais sombrios devido ao traje fastidioso que o puritano vestia.

– Sim, senhor. É muito mais seguro – o jovem respondeu à sua exclamação de surpresa.

– Então, a trilha pela charneca deve ser assombrada pelo próprio Satanás, para que os homens do vilarejo me aconselhem a seguir pela outra.

– É por causa dos atoleiros, senhor, são impossíveis de ver no escuro. É melhor que o senhor volte para a aldeia e siga viagem pela manhã.

– Pelo pântano?

– Sim, senhor.

Kane deu de ombros e meneou a cabeça.

– A Lua nasce quase ao mesmo tempo em que o Sol se põe. Com sua luz, eu posso chegar a Torkertown em poucas horas, se cruzar pela charneca.

– Senhor, é melhor não ir. Ninguém segue por lá. Não há nenhuma cabana em toda a charneca, enquanto no pântano existe a casa do velho Ezra, que vive lá sozinho desde que seu primo maníaco, Gideon, embrenhou-se e morreu no lodaçal, sem jamais ser encontrado; e o velho Ezra, apesar de miserável, não recusaria dar-lhe abrigo caso decidisse descansar até de manhã. Uma vez que realmente precisa ir, é melhor tomar o caminho do pântano.

Kane olhou para o rapaz de forma penetrante. O jovem estremeceu e arrastou os pés no chão.

– Se a charneca é tão inclemente para com os viajantes – falou o puritano –, por que as pessoas da vila não me contam toda a história, em vez de balbucios vagos?

– Ninguém gosta de falar sobre isso. Nós tínhamos a esperança de que o senhor tomasse a rota do pântano, como os homens lhe aconselharam, mas, quando vimos que o senhor não tinha virado na bifurcação, eles me enviaram correndo para implorar que reconsidere.

– Maldito seja! – exclamou Kane bruscamente, mostrando sua irritação. – O caminho do pântano, o caminho da charneca... O que é que me ameaça e por que eu deveria fazer um desvio de quilômetros fora de minha rota para me arriscar pelo lodo e pela lama?

– Senhor – disse o rapaz, aproximando-se e abaixando o tom de voz –, somos pessoas simples e ninguém gosta de falar sobre essas coisas por temer que a má sorte recaia sobre nós, mas a estrada da charneca é amaldiçoada. Essa rota não é percorrida por nenhum dos nossos há mais de um ano.